quinta-feira, 24 de abril de 2008

Um pouco de Bruno Tolentino.

O ESPECTRO
(A Ivan Junqueira)

Não há como agarrar-te à naturezaquando a asa da noite baixa e faza sombra sobre a acha, a lenha presaà luz da labareda que a desfaz;morres despreparado ou morres bem,mas passas pela cinza, meu rapaz.Tudo talvez ressurja mais além,mas ao abutre, albatroz, águia ou condoro vôo acaba por pesar e temque perder altitude no esplendor:dos páramos à esteira de uma naveestende-se a amplidão, mas sem reporfôlego a um coração até que a averecolha a asa e pronto, se acabou,foi-se o que era tão doce! Tão suavelevitou-se e mais nada lembra o vôo...Nada, nem mesmo a terra, eqüidistantedo que caiu como do que voltou,com uma equanimidade impressionante.E caso a interpelassem que diria?Nada outra vez, ou menos que o ex-amantefingindo-se impassível se algum diaouve dizer que tudo acaba assim.Pois foi assim que o espectro da poesiasurgiu-me um belo dia, e veio a mimassim que eu consegui levar a sérioos canteiros de Kant num jardimà beira Tâmisa, ante um cemitério...Lá estivera eu de mão no queixoa espanar as lombadas do mistério,seguindo a lógica ao seu belo fecho:afinal, se a equação mais arbitráriaconseguiria amarrar a terra a um eixo,qualquer cogitação imaginárianão seria nem mais nem menos frágil;divagações da hora solitária,arabescos da mente, sempre ágilao fazer de um trapézio o seu lugar.Pois foi então que, assim como um presságioobriga a respirar mais devagar,mas faz bater mais forte o coração,eu primeiro senti aquele olharantes de perceber a assombraçãoque entre o rio, o junquilho e o malmequervi caminhar em minha direção.Atônito, amparei-me a uma mulher,semidesfalecido: o encapotadoera a cara do Charles Baudelairedo retrato, cuspido e escarrado!Ninguém via o que estava acontecendo,em toda aquela gente ali ao ladoninguém notava aquele rosto idênticoà corola da rosa corroídaem que Blake encarnara o sofrimento.E lá vinha ele andando! Espavoridamas alerta, habilíssima colméia,a mente me exigia uma saídae, assim como o avestruz ante a alcatéia,insistia em não ver: não, não seria,não podia ser ele, era outra idéiaa espumejar na velha alegoriados nevoeiros que complicam Londres...Mas não havia erro! A ventaniahavia depenado tanto as frondesque atirava topázios e safirascontra o bueiro em brasas do horizonte,mas nele havia o ar dessas mentirasque dizem a verdade: confrontou-mee num rápido olhar deixou-me em tirasos trapos da razão – era o meu homem!Há múmias que uma vez desembrulhadastêm escrito na cara o nosso nome.Carros, ônibus, gente nas calçadas,um semáforo ao longe, vaga-lumeestático entre sombras apressadas,e aquilo a se agitar que nem um cumede palmeira no ar – e andando, andandoe desferindo o olhar como um perfumede gangrena fatal ensarilhandoo eterno câncer da imaginaçãoque desorbita a mente como um bandode morcegos agrava a escuridão.Por fim parou-me ao lado e imagineiouvir (talvez sonhasse, talvez não...)um balbucio familiar e cheiode ecos aos que andamos pelo canto:“Andaste num vazio sempre alheio,entre noções apenas e, no entanto,nunca bastou sequer a consolar-tetanta fabulação cheia de espanto,de dor... Buscas o todo parte a parte,queres as perfeições da geometria,e ao fim do sonho circular da arteentregas tudo à fantasmagoria,aos jogos malabares da ilusão.Andas equivocado e nem seriade surpreender tua equivocação,porque, se alguma vez desconfiastedessa imprudência, abriste o coraçãoà luz conceitual, o belo trasteque temes porque o adoras e te leva,como o refém que és do que adoraste,de lição em lição à mesma treva.É tudo sempre a treva tumultuosa,não por causa da carne, que se elevaquando quer à estação miraculosa,mas por causa do olhar que não quer vere abisma-se em si mesmo, como a rosaamada pelo verme e sem poderde o recusar, tentando resignar-se.Não te resignes mais a conceberum triunfo de idéias, um disfarcepara as caras da morte neste mundo,uma equação qualquer que a mascarasse,como o médico mente ao moribundoe o coitado a si mesmo: também eumeti-me com paixão nesse infecundoescrínio de ilusões, mas vem do céua luz que nos sustém, a que alucina,a luz conceitual, nasce de um breu.Não sigas mais a falsa peregrinaque rapta a imagem, rouba-lhe o reflexoe entrega os dois a um jogo que terminapor desfazer de tudo a cada nexo.A terra é provisória e improvidente,tudo é relâmpago entre a morte e o sexo,mas a alma faminta não consenteque lhe mintam! A Idéia te convidamas não recebe nunca e, de repente,entre a porta da entrada e a da saídaperdes as proporções e logo a conta,o fio da meada e o dom da vida;fecha-se a última jaula e a fera tontadescobre que agoniza e morre presa.E no entanto repara: o cisne apontapara a altura cantando, e com certezaessa canção no extremo transfiguraa coisa moritura e a alma surpresaentre o número, o nada e a noite escura...

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