domingo, 27 de abril de 2008

Desculpem-me...

Recentemente eu postei o discurso de Roberto Campos em sua posse como "imortal" na ABL e uma linda poesia de Bruno Tolentino. Ocorre que, por não entender muito de computador, os textos acabaram saindo meio sem formatação, meio estranhos.
Desculpem-me.
Espero que pelo menos dê pra ler. Vale a pena o esforço.

quinta-feira, 24 de abril de 2008

Um pouco de Bruno Tolentino.

O ESPECTRO
(A Ivan Junqueira)

Não há como agarrar-te à naturezaquando a asa da noite baixa e faza sombra sobre a acha, a lenha presaà luz da labareda que a desfaz;morres despreparado ou morres bem,mas passas pela cinza, meu rapaz.Tudo talvez ressurja mais além,mas ao abutre, albatroz, águia ou condoro vôo acaba por pesar e temque perder altitude no esplendor:dos páramos à esteira de uma naveestende-se a amplidão, mas sem reporfôlego a um coração até que a averecolha a asa e pronto, se acabou,foi-se o que era tão doce! Tão suavelevitou-se e mais nada lembra o vôo...Nada, nem mesmo a terra, eqüidistantedo que caiu como do que voltou,com uma equanimidade impressionante.E caso a interpelassem que diria?Nada outra vez, ou menos que o ex-amantefingindo-se impassível se algum diaouve dizer que tudo acaba assim.Pois foi assim que o espectro da poesiasurgiu-me um belo dia, e veio a mimassim que eu consegui levar a sérioos canteiros de Kant num jardimà beira Tâmisa, ante um cemitério...Lá estivera eu de mão no queixoa espanar as lombadas do mistério,seguindo a lógica ao seu belo fecho:afinal, se a equação mais arbitráriaconseguiria amarrar a terra a um eixo,qualquer cogitação imaginárianão seria nem mais nem menos frágil;divagações da hora solitária,arabescos da mente, sempre ágilao fazer de um trapézio o seu lugar.Pois foi então que, assim como um presságioobriga a respirar mais devagar,mas faz bater mais forte o coração,eu primeiro senti aquele olharantes de perceber a assombraçãoque entre o rio, o junquilho e o malmequervi caminhar em minha direção.Atônito, amparei-me a uma mulher,semidesfalecido: o encapotadoera a cara do Charles Baudelairedo retrato, cuspido e escarrado!Ninguém via o que estava acontecendo,em toda aquela gente ali ao ladoninguém notava aquele rosto idênticoà corola da rosa corroídaem que Blake encarnara o sofrimento.E lá vinha ele andando! Espavoridamas alerta, habilíssima colméia,a mente me exigia uma saídae, assim como o avestruz ante a alcatéia,insistia em não ver: não, não seria,não podia ser ele, era outra idéiaa espumejar na velha alegoriados nevoeiros que complicam Londres...Mas não havia erro! A ventaniahavia depenado tanto as frondesque atirava topázios e safirascontra o bueiro em brasas do horizonte,mas nele havia o ar dessas mentirasque dizem a verdade: confrontou-mee num rápido olhar deixou-me em tirasos trapos da razão – era o meu homem!Há múmias que uma vez desembrulhadastêm escrito na cara o nosso nome.Carros, ônibus, gente nas calçadas,um semáforo ao longe, vaga-lumeestático entre sombras apressadas,e aquilo a se agitar que nem um cumede palmeira no ar – e andando, andandoe desferindo o olhar como um perfumede gangrena fatal ensarilhandoo eterno câncer da imaginaçãoque desorbita a mente como um bandode morcegos agrava a escuridão.Por fim parou-me ao lado e imagineiouvir (talvez sonhasse, talvez não...)um balbucio familiar e cheiode ecos aos que andamos pelo canto:“Andaste num vazio sempre alheio,entre noções apenas e, no entanto,nunca bastou sequer a consolar-tetanta fabulação cheia de espanto,de dor... Buscas o todo parte a parte,queres as perfeições da geometria,e ao fim do sonho circular da arteentregas tudo à fantasmagoria,aos jogos malabares da ilusão.Andas equivocado e nem seriade surpreender tua equivocação,porque, se alguma vez desconfiastedessa imprudência, abriste o coraçãoà luz conceitual, o belo trasteque temes porque o adoras e te leva,como o refém que és do que adoraste,de lição em lição à mesma treva.É tudo sempre a treva tumultuosa,não por causa da carne, que se elevaquando quer à estação miraculosa,mas por causa do olhar que não quer vere abisma-se em si mesmo, como a rosaamada pelo verme e sem poderde o recusar, tentando resignar-se.Não te resignes mais a conceberum triunfo de idéias, um disfarcepara as caras da morte neste mundo,uma equação qualquer que a mascarasse,como o médico mente ao moribundoe o coitado a si mesmo: também eumeti-me com paixão nesse infecundoescrínio de ilusões, mas vem do céua luz que nos sustém, a que alucina,a luz conceitual, nasce de um breu.Não sigas mais a falsa peregrinaque rapta a imagem, rouba-lhe o reflexoe entrega os dois a um jogo que terminapor desfazer de tudo a cada nexo.A terra é provisória e improvidente,tudo é relâmpago entre a morte e o sexo,mas a alma faminta não consenteque lhe mintam! A Idéia te convidamas não recebe nunca e, de repente,entre a porta da entrada e a da saídaperdes as proporções e logo a conta,o fio da meada e o dom da vida;fecha-se a última jaula e a fera tontadescobre que agoniza e morre presa.E no entanto repara: o cisne apontapara a altura cantando, e com certezaessa canção no extremo transfiguraa coisa moritura e a alma surpresaentre o número, o nada e a noite escura...

terça-feira, 22 de abril de 2008

Um discurso para a história!

Quando eu estou sem ter o que fazer, gosto de ler. Na ausência de um bom e sem saco para reler algum bom, procuro na internet uma boa leitura. Dia desses, resolvi reler o célebre discurso de Roberto Campos, vulgo "Bob Fields", na sua posse na ABL. É uma preciosidade. Achei a íntegra com a ajuda do velho e bom google. Deliciem-se.

Tristes são as pessoas e as coisas consideradas sem ênfase. Assim versejou o grande Carlos Drummond de Andrade. A julgar pelo tumulto ideológico que suscitou minha campanha para este calmo sodalício, não sou uma pessoa considerado sem ênfase. Chego à Academia em idade crepuscular, o que tem a vantagem de permitir-me saborear melhor um dos poucos prazeres - a cultura - que sobrevivem à desconstrução da juventude.Refocilando a memória, verifico que a primeira pessoa que fez perpassar um sopro de ambição acadêmica em minha mente, até então entupida pelas miudezas do pragmatismo econômico, foi Rachel de Queiroz.Lá se vai mais de um decênio. Visitei-a. Falávamos generalidades sobre o Brasil e sobre a trágica morte de um comum amigo, o presidente Castello Branco, cuja ascensão ao poder foi um acidente benigno de liderança, e cujo desaparecimento um acidente maligno da história. Se vivo, talvez influenciasse para encurtar o período de excepcionalidade militar, que ele, receoso da corrupção do poder, queria breve, suficiente apenas para evitar um autoritarismo de esquerda.Subitamente, numa guinada reflexiva, Rachel me perguntou:- Você já pensou em candidatar-se à Academia de Letras?- Não, respondi-lhe. Não acredito que tenha obra suficiente e careço de outros requisitos.- Da obra - disse-me ela - não cabe a você julgar, e sim aos acadêmicos. Os requisitos são dois. Providenciar um cadáver e não ser uma personalidade muito controvertida.Não passo neste vestibular, respondi-lhe. Providenciar um cadáver depende do Criador, e não desejo que ele se apresse. Não ser personalidade controvertida depende dos outros.- Lembre-se, acrescentei, do que dizia nosso amigo, o presidente Castello: "Não é verdade que eu seja teimoso; teimoso é quem teima comigo". O mesmo digo eu: "Não sou controvertido. Controvertido é quem controverte comigo".Anos depois, em 1991, o Criador fez sua tarefa em momento errado e em relação à pessoa errada. As Parcas roubaram de nosso convívio, aos 49 anos, José Guilherme Merquior, um gênio do "liberismo" - expressão que ele preferia ao liberalismo, para demonstrar que não era liberal apenas na política, mas também na economia. Convivi muito com dois grandes liberistas de minha geração - Merquior e Mário Henrique Simonsen. Com o desaparecimento de ambos, em plena produtividade, também morri um pouco.Merquior, ocupante da cadeira 12 desta Academia, tinha sido meu conselheiro diplomático, quando exerci a função de embaixador em Londres, posto que deixei em 1982, para candidatar-me ao Senado Federal por Mato Grosso.Tive o bom senso de dispensá-lo da rotina da embaixada, encorajando-o a fazer seu doutorado em Sociologia e Política na London School of Economics.- Sua tese doutoral contribuirá mais para a cultura brasileira, disse-lhe eu, que os relatórios diplomáticos que dormirão o sono dos justos nos arquivos do Itamaraty.Previ corretamente. A tese de Merquior - "Rousseau and Weber - Two Studies in the Theory of Legitimacy" - escrita em inglês erudito, que humilhava os nativos monoglotas, se tornou parte da bibliografia básica em várias universidades européias.Encorajado por sua viúva Hilda e por acadêmicos amigos, e rompendo inibições que me tornam antipático para disfarçar timidez, candidatei-me a esta Academia na vaga de Merquior. Ninguém foi eleito na primeira rodada em abril de 1991 e eu desisti da luta, reconhecendo a preferência da Casa pelo meu amigo João de Scantinburgo, filósofo e historiador, cuja "História do Liberalismo no Brasil" se tornou referência para os estudiosos das idéias liberais. Um ano depois, cometi a imprudência de candidatar-me à Cadeira 13, quando deveria estar me aplicando mais às campanhas políticas. Tinha sido encorajado por esse benevolente promotor de ambições acadêmicas, que é Jorge Amado, de quem me fiz amigo em Londres, quando, indiferente à bagatela de Picadilly Circus, escrevia, hospedado na casa de Antonio Olinto, o romance "Tieta do Agreste". Mas tanto Jorge, por benevolência, como eu, por imodéstia, sobreestimávamos meus méritos. Foi a Academia que ganhou com a recepção de um novo talento, Sérgio Rouanet, filósofo iluminista, opção, aliás, racional num país que de tantas luzes carece. Minha mulher Stella, que com sereno realismo se opusera às minhas ambições acadêmicas, passou-me um pito, usando uma expressão "academiabilidade", que ouvira de Gilberto Amado: "Entre os seus vários dotes, meu caro, não se inclui o da "academiabilidade", sussurrou-me ela.Relato essas peripécias para demonstrar que nas porfias acadêmicas não fui um "cão de açougue". Manuel Bandeira, conta-nos Ledo Ivo, assim chamava os "candidatos ao vosso convívio, antecipadamente vitoriosos". Esses não deixam para os rivais nem ossos nem esperanças...Transcorreu depois um longo intervalo em que me dediquei a ganhar eleições para a Câmara Federal. Tarefa mais fácil, sem dúvida, pois como dizia Napoleão Bonaparte, "em política, a estupidez não é um handicap". Até porque, segundo Krushev, os políticos podem prometer pontes onde não há rios.Sobre a dura porfia de ingressar neste cenáculo, não há autoridade maior que Juscelino Kubitschek. Tendo vencido por centenas de milhares de votos eleições para governador de Minas e para presidente da República, perdeu por um sufrágio sua eleição para a Cadeira nº 1 deste sodalício.Passaram-se os anos mas não passou de todo a tentação. Ela foi ressuscitada por três amigos que eu chamarei de "os três mosqueteiros" - Antonio Olinto, Tarcísio Padilha e Murilo Melo Filho - sob a neutralidade simpática do presidente Arnaldo Niskier. Esmeraram-se eles em demonstrar-me que os tempos tinham mudado. Muitas das minhas teses heréticas ficaram consensuais e meu grau de "academiabilidade" melhorara a ponto de não inspirar cuidados. Havia, entretanto, um veto doméstico. Faríamos, Stella e eu, este ano, 60 anos de casados, o que, nesta era de rotatividade matrimonial, é um feito portentoso, que rouba, entretanto, ao marido a qualidade de macho dominador. Stella tinha sua autoridade reforçada por desmentirmos brilhantemente o sarcasmo de Nelson Rodrigues, que numa rodada de uísque vespertino comigo e meu cunhado, o saudoso cineasta Flávio Tambellini, respondeu indignado a um cliente em mesa vizinha que lhe entregou um convite para uma festa de Bodas de Ouro: "Viver com a mesma mulher durante meio século é cinismo ou falta de imaginação".Vendo-me prestes a sucumbir à tentação de buscar a imortalidade acadêmica, Stella protestou:- Só pode ser ambição senil. E desnecessária, pois você vive dizendo que a generosa Constituição de 1988, em seu Artigo 230, tornou imortais todos os idosos brasileiros, garantindo-lhes "o direito à vida".Respondi-lhe ter a imortalidade literária um sabor especial, por ser um julgamento histórico, superior às vulgaridades constitucionais que frequentemente não "pegam". Não haveria, aliás, perigo de vaidade senil, pois nunca me esquecera da resposta de Olavo Bilac, um dos fundadores da Academia, a quem lhe perguntou se não era insólita arrogância dos acadêmicos inscreverem em seu brasão "AD IMMORTALITATEM": - Não - disse Bilac - os acadêmicos são imortais porque não têm onde cair mortos …Existiram, certamente, cenáculos de apelação menos pretensiosa, como fez notar Afrânio Peixoto em sua introdução aos volumes que compendiam vossos discursos acadêmicos. Relata-nos ele que em Portugal surgiu, em 1647, a Academia dos "Generosos", seguida pela dos "Singulares" em 1663. "Confiados" se chamavam os acadêmicos de Pavia; "Declarados", os de Sena; "Elevados", os de Ferrara; "Inflamados" os de Pádua; "Unidos", os de Veneza. Em 1724, criou-se na Bahia a "Academia Brasílica dos Esquecidos", ressuscitada depois sob o nome de "Academia Brasílica dos Renascidos". No Rio de Janeiro, em 1736, se instalaria a "Academia dos Felizes"; e em 1751, a dos "Seletos". A mais bizarra de todas foi a dos "Rebeldes", uma aventura juvenil de Jorge Amado, criada em Salvador, para rebater o formalismo e suposto elitismo da Academia Brasileira de Letras. Teve precária existência, de 1928 a 1930, reunindo-se numa sala de sessões espíritas, sob os eflúvios de Alan Kardec. Jorge Amado depois criou juízo, sendo eleito "imortal" nesta Academia, em 1961, da qual é membro querido e respeitado. Durante certo tempo, foi chique entre os intelectuais de esquerda desdenharem o venerando grêmio de Machado de Assis, mas vários sucumbiram ao seu encantamento, como Antonio Callado, Antonio Houaiss, Darcy Ribeiro e Dias Gomes.Minha paz familiar foi restaurada graças a um telefonema de Rachel de Queiroz, que estava então pastoreando rebanhos em sua fazenda no Ceará. Com sua infinita e doce persuasão, induziu-nos todos a crer que minha candidatura a esta Academia deixara de ser uma idéia fora do lugar.Para minha surpresa, que me rejuvenesceu, pois ser jovem é apenas a capacidade de ter surpresa, deflagrou-se, anunciada minha pretensão à vaga de Dias Gomes, uma ridícula batalha ideológica, que, magnificada pela mídia, me transformaria numa ameaça à paz e a elegância deste cenáculo.Velho e cansado de brigas, visitei então o presidente Niskier e os membros da Diretoria, para ofertar-lhes minha renúncia à candidatura. Encontrei pronta reação dos ilustres confrades:- A Academia Brasileira de Letras - disseram-me - nasceu ecumênica e assim continuará. Não aceitamos vetos de nenhuma ideologia e não há reserva de mercado para nenhuma seita política. A Academia é um templo de comunhão cultural e não uma arena de gladiadores políticos.E lembraram-me que, em seu nascimento, esta Casa fundiu numa comunhão de interesses culturais, dois grupos políticos radicalmente opostos - os republicanos e os monarquistas - sem que houvesse jamais desrespeito ao congraçamento cultural. Republicanos eram Rui Barbosa, Lucio Mendonça, Medeiros de Albuquerque e Graça Aranha. Monarquistas eram Joaquim Nabuco, Eduardo Prado, Carlos de Laet e Afonso Celso. Conviveram depois em plena tranqüilidade "florianistas", como Artur de Azevedo e Coelho Neto, e "anti florianistas", como Rui Barbosa , Olavo Bilac e José do Patrocínio.- Aliás - acrescentou o presidente Niskier - essa tradição de abertura ecumênica é tão forte que se criou a liturgia de incineração de votos, convencionando-se que o candidato vitorioso foi eleito por unanimidade. Verifiquei depois, lendo a interessante auto-biografia de Dias Gomes, que ele também sofrera impugnações ideológicas, quando sucedeu a Adonias Filho, por estar no lado oposto do espectro político. Multiplicaram-se cartas à Academia, protestando contra a sua eleição.No meu caso, a querela foi muito mais estridente. Aliás, como alvo de personalismos injuriosos, ganhei todos os campeonatos desta pátria amada, sofrendo patrulhamentos e recebendo xingamentos tanto da esquerda radical como dos nacionalistas de direita. O mais inteligente dos críticos à minha política econômica, quando Ministro do Planejamento, foi, sem dúvida, Carlos Lacerda. Esse esmagador polemista disse uma vez, provocando "suspense" na audiência: "Tenho a maior admiração pelo Dr. Campos… pela sua absoluta imparcialidade: mata imparcialmente os ricos, de raiva, e os pobres, de fome". Não pude excogitar de imediato outra resposta, senão dizer que a "fúria da seta dignificava o alvo".Mas o argumento fundamental que me fez desistir da desistência foi o da rotatividade da cadeira 21. Tanto Álvaro Moreyra como Adonias Filho e Dias Gomes, em seus discursos de posse, rotularam-na de "cadeira de liberdade". Poder-se-ia chamá-la também de "cadeira do ecletismo". Seu membro fundador foi José do Patrocínio, um liberal abolicionista. Escolheu para patrono Joaquim Serra, também um abolicionista que cultivava a filosofia platônica e se declarava positivista. O segundo ocupante foi Mario de Alencar, tão recluso em seus pendores, que se poderia chamar de neutralista. O terceiro foi Olegário Mariano, um conservador getulista. O quarto foi Álvaro Moreyra, o primeiro a se declarar comunista. O quinto foi Adonias Filho, um ex-integralista, partidário da Revolução de 1964. Sucedeu-lhe Dias Gomes, que se inscrevera no Partido Comunista no final da II Guerra.Mantido o precedente da alternância, seria a hora e vez de um conservador ou de um liberal. Diferem os dois em que o conservador quer preservar o "status quo", enquanto o liberal aceita mudanças, desde que emanadas do mercado competitivo ou provindas do voto democrático. Defino-me como um "liberista" que vê no governo um mal necessário. Às vezes, absolutamente necessário.Descobri algumas afinidades com Dias Gomes. Ambos tivemos educação religiosa, ele num colégio marista, enquanto eu completei dez anos em seminário católico, graduando-me em Filosofia e Teologia. Foram anos de retiro e castidade, durante os quais acumulei um enorme direito de pecar, que nunca pude usar, por falta de cooperação complacente.Dizia-se, na minha adolescência, que um cavalheiro completo tinha que ter um diploma de bacharel, vestígios de uma doença do sexo e escrever um poema. Enclausurado num mosteiro, desqualifiquei-me nos dois primeiros requisitos, mas cometi alguns poemetos sob a forma de "haikais" que, para bem da Humanidade, consignei à lata de lixo. Só me lembro de um "haikai", de duvidoso gosto, mas não de todo inimaginoso:- "Lança os teus olhos ao mar pela hora redonda.E aprende na folha que cai a geometria da queda".Dias Gomes também cometeu romances juvenis, sobre os quais talvez consentisse em dizer: "esqueçam o que escrevi".Cometemos, assim, ambos, erros de vocação. Ele estagiou por dois meses numa escola de cadetes, fez curso preparatório para Engenharia e cursou até o 3º ano de Direito, quando, finalmente, descobriu que sua verdadeira vocação era a arte teatral. Desdobrar-se-ia depois no rádio e na televisão, com igual brilhantismo e incrível produtividade.Eu, de teólogo, tratando como diz Anatole France "avec une minutieuse exactitude del'Inconnaissable", passei à Economia, que dizem ser a "ciência de alcançar a miséria com o auxílio da estatística".Dias Gomes e eu tivemos a mesma votação nesta Academia, indicando que os acadêmicos são tão maus profetas quanto os economistas, pois nossos respectivos aliados nos prediziam vitórias consagradoras. Isso me faz lembrar uma estória contada por um querido amigo, o pediatra Rinaldo de Lamare, sobre a Academia Nacional de Medicina, veneranda instituição que já completou 172 anos. Revoltado por sucessivos repúdios à sua pretensão de figurar entre os 100 acadêmicos, assim se pronunciou um esculápio frustrado: - A Academia é um grupo de médicos de indiscutível valor profissional, de justificada vaidade profissional e de incompreensível falsidade eleitoral.Nossas percepções do mundo, sempre antagônicas, se adoçaram nas refregas do mundo real. Dias Gomes, que se considerava um subversivo vocacional, aderiu ao Comunismo em 1945, e, sem ser um ativista ou fanático, nele permaneceu até 1971, desviando-se da linha do partido ao protestar em 1966 contra o mau tratamento dado aos escritores soviéticos. Custou a aceitar a morte da "ilusão", reconhecendo afinal a incompatibilidade básica entre sua vigorosa luta pela preservação da dignidade do ser humano e contra qualquer forma de intolerância, com as brutalidades do socialismo real e seu arsenal de expurgos, "gulags" e submissão das artes aos dogmas do PCUS. O comunismo se tornou mundialmente uma espécie de religião leiga, tendo o Kremlim, como o Vaticano, o "Das Kapital" por bíblia e a ditadura do proletariado como a "parousia".Em novembro de 1996, em entrevista dada a Ana Madureira de Pinho, na "Revista de Domingo", do Jornal do Brasil, Dias Gomes declarou:- Não sou comunista, porque o comunismo é uma utopia, nunca existiu em nenhum país do mundo comunista. Me considero um homem de esquerda, anti dogmático. Uma vez me defini para amigos: um "anarco-marxista-ecumênico-sensual" (esse jogo de palavras me faz lembrar a definição por Eliezer Batista, do sistema político de invasão de poderes criado pela Constituição de 1988: uma "surubocracia anarco-sindical").E continuou:- Sou um homem aberto hoje em dia. Muitas idéias foram reformuladas, mas continuo um homem de esquerda. Isso se você considera ser de esquerda somente sonhar com uma sociedade mais justa e mais liberta. Se o comunismo nunca existiu, tem razão o historiador francês ex-comunista Francois Furet, ao escrever seu monumental tratado do arrependimento: "Le passé d'une ilusion". Essa ilusão custou ao mundo quase 100 milhões de vítimas. Das grandes ideologias mundiais não cristãs, o marxismo leninismo foi a mais sangrenta e mais curta - 72 anos. O islamismo está ainda em expansão e durou 14 séculos. O budismo e confucionismo sobrevivem há cerca de 24 ou 25 séculos.Mas Dias Gomes exagera no seu réquiem do comunismo. No museu de obsoletismos políticos, sobrevivem dois espécimes: Cuba e Coréia do Norte. E curiosamente algumas universidades públicas brasileiras tornaram-se o último refúgio do profetismo e da vulgata marxista.Dias Gomes, que se auto descreve como um "proibido precoce", teve peças censuradas ou proibidas pelos dois governos Vargas, por vários governos militares e até mesmo por Carlos Lacerda, como Governador da Guanabara. Confessa, entretanto, uma frustração:- Não ter sido preso é uma falha na minha biografia que me envergonha, uma injusta lacuna. Por tudo que fiz, sem modéstia, eu acho que merecia uma honrosa cadeia (o Dia, 30/4/98).Eu não tive necessidade de retratação porque nunca cedi a radicalismos nem de direita, nem de esquerda. Minha punição foi não passar de uma carreira pública medíocre, por insistir em dizer a verdade antes do tempo, pecado que a política não perdoa. Quando jovem, no início da II Guerra, parecia inevitável a vitória do Eixo sobre as "democracias decadentes". Mas eu respondia aos que assim profetizavam:- Hitler é apenas um Napoleão que nasceu falando alemão, com a desvantagem de não ter feito nada comparável ao Código Napoleônico.Também não me iludi com o totalitarismo de esquerda, por um raciocínio simples. Deus não é socialista. Criou os homens profundamente desiguais. Tudo que se pode fazer é administrar humanamente essa desigualdade, buscando igualar as oportunidades, sem impor resultados. De outra maneira, estaríamos brincando de Deus, ao tentarmos refabricar o homem. É o que tentaram fazer Marx e Lenin, com os resultados conhecidos: despotismo e empobrecimento. Isso me levou, ainda jovem, a acreditar que o sistema político ideal seria o capitalismo democrático, isto é, o casamento da democracia política com a economia de mercado. Parodiando Churchill, pode-se dizer que o capitalismo é o pior dos sistemas econômicos, exceto todos os outros; e a democracia é o pior sistema político, excetuado todos os outros.Mas se não tive de recitar o "confiteor" por ter optado pelo sistema errado, fui obrigado a fazer retificações de rumo. Em minha juventude, acreditava no Estado planejador e motor do desenvolvimento. Curiosamente, meu desapontamento começou quando, como Ministro do Planejamento, visitei a União Soviética em 1965. Assustei-me com a presunção dos burocratas do Gosplan. Ignorando o consumidor, eles planejavam, com ridícula minúcia, a quantidade e a qualidade dos bens de consumo. Acabavam produzindo o que o consumidor não queria consumir. E verifiquei que o planejamento central já era ridicularizado na sabedoria das anedotas polulares. Chiste corrente em Moscou, originário da rádio Yerevan, da capital da Armênia, dizia que uma professora pedira a um de seus alunos para conjugar o verbo "planejar". Mal começou o aluno a balbuciar "eu planejo, tu planejas, ele planeja …", a professora perguntou-lhe: "Que tempo do verbo é esse?" - Tempo perdido", respondeu o aluno.Embrenhei-me depois na leitura dos liberais austríacos, como Von Mises e Hayek, convencendo-me de que planos de governo são "sonhos com data marcada". Antes, queria que o governo fosse um engenheiro social, modelando o desenvolvimento. Hoje rezo para que ele seja apenas um jardineiro, adubando o solo, extraindo ervas daninhas e deixando as plantas crescerem … E um samaritano competente, para cuidar do social.OS PARADOXOS DE KENNEDYUm dos mais embaraçoso episódios de minha carreira diplomática, quando embaixador em Washington, foram duas inesperadas indagações que me fez o presidente Kennedy, ao fim de uma conversa relativa à implementação do acordo Kennedy-Goulart sobre a transformação, em nacionalizações negociadas, das encampações confiscatórias feitas pelo governador Brizola, de empresas americanas de telefonia e eletricidade. Eliminar-se-ia, assim, uma área de atrito.Ao me despedir, Kennedy dardejou-me duas instigantes perguntas:- "Por que , disse ele, no Brasil e na América Latina, há um viés favorável, entre estudantes, escritores e artistas, ao modelo soviético, maquilado de "socialismo real"? Deveria ser o contrário. Os estudantes adoram mudanças e a sociedade mais experimental do mundo são os Estados Unidos, com sua multiplicidade de raças e religiões, pluralismo político e abertura a inovações. Quanto aos escritores e artistas … presume-se que desejem liberdade criadora de pensamento e expressão. É precisamente isso que inexiste na União Soviética, onde a doutrina do "realismo socialista" condena o individualismo criador e transforma artes e artistas em instrumentos de propaganda partidária, sob pena de patrulhamento, gulags, exílios e privação dos direitos civis?Confesso que fiquei embaraçado, sem resposta direta àquilo que chamei de "paradoxos de Kennedy".- Quanto aos jovens, balbuciei, parece que a rebeldia natural da idade se transforma em preconceito contra o mais forte e o mais poderoso. Os mais poderosos só podem aspirar a ser respeitados, nunca amados. A juventude tem encanto por utopias e o capitalismo é rico na produção de mercadorias, porém não na produção de mitos. Para os jovens, a fórmula do dinamite é mais fácil que a do cimento armado. E acrescentei que talvez Bernard Shaw tivesse razão ao dizer que a juventude é uma coisa maravilhosa, sendo pena desperdiçá-la nas crianças.Mais difícil, acrescentei, é explicar a abundância de intelectuais de esquerda. E, bancando o erudito, citei a teoria de Raymond Aron, cujo livro "L'opium des intellectuels" eu conhecia bem, por ter prefaciado a edição brasileira. Diz Aron que o surgimento do "socialismo real" criou mitos substitutivos dos velhos deuses do Iluminismo: o Progresso, a Razão e o Povo. O novos deuses seriam: o mito da Esquerda, o da Revolução e o do Proletariado. Os intelectuais se seduziram por uma espécie de romantismo revolucionário, considerando as reformas "enfadonhas e prosaicas" e a revolução "excitante e poética". O culto marxista da revolução violenta virou uma espécie de refúgio do pensamento utópico.Para um político pragmático como Kennedy, interessado na melhora imediata da imagem de seu país entre os latino americanos, minhas divagações eram um lance errado. Ele queria respostas e eu desovava perplexidades. Há um outro paradoxo que Kennedy não mencionou. É que os socialistas, que tanto falam nas massas, não foram os criadores nem do consumo de massa, nem da cultura de massa. Essas massificações equalizantes foram produzidas pela cultura individualista americana. Hollywood foi uma criação de judeus provindos em grande parte dos guetos da Europa Oriental, vítimas de pobreza e discriminação e por isso obcecados com a idéia de criar fábricas de sonhos. O cinema, originado no Ocidente, talvez tenha sido a primeira "cultura de massa" do mundo, agora ampliada pela televisão e pela Internet, também em criações capitalistas.Meditei muito ao longo de vários anos e até hoje não tenho respostas. Como explicar a mansa aceitação entre nós da cultura americana do jazz, do rock, do fast food, do cinema, acoplada a uma rejeição zangada da cultura do capitalismo democrático que lhes deu origem?Como explicar que intelectuais de esquerda, que em seu país lutaram pela liberdade criadora e pela dignidade da pessoa humana, tivessem simpatizado, ao longo de vários anos de guerra fria, com um sistema que institucionalizava a delação, a censura, os expurgos e os gulags. Um sistema tão repressivo que levou ao suicídio grandes poetas como Mayakovsky e Ossip Mandelstan; que submeteu à censura política óperas de Shostakovich e obrigou filósofos como George Lukcás a humilhantes retratações.É uma espécie de esquizofrenia ideológica, que se traduziu em mutilação de corpos e almas em nome da utopia. É por isso que não gosto das utopias. Como disse o politólogo Ralf Dahrendorf: "Nada mais anti-liberal que a utopia, que não deixa lugar para o erro nem para a correção".A CADEIRA DA LIBERDADEO fundador da "cadeira da liberdade" foi José do Patrocínio, jornalista, panfletário, romancista e sobretudo formidável orador. Na tribuna, chamavam-no de "Tigre". O título que mais prezava era o de "Herói da Abolição". Contribuíra tanto ou mais que Nabuco ou Rui Barbsoa para a liberação de 1,6 milhão de escravos em 1888. Era capaz de incendiar multidões quando descrevia o sofrimento dos escravos, a mutilação de suas vidas e a desumanidade da opressão. Ao ouvi-lo, Euclydes da Cunha o descrevia como um "tumulto feito homem". Melhor orador e jornalista que romancista, legou-nos quatro romances, dois dos quais são uma mistura de grito de angústia e panfleto social. O primeiro, "Motta Coqueiro", é um libelo contra a pena de morte. O segundo é um pungente relato do sofrimento imposto pela grande seca do Nordeste em 1877. Uma coisa interessante é a denúncia por Patrocínio da corrupção das "comissões de socorro", que intermediavam as verbas entre o "Retirante" e o "Estado". Eram um sorvedouro, fazendo com que os assistentes ficassem melhor que os assistidos. Hoje, 122 anos depois, continuamos despreparados para as secas e ainda se fala na "indústria da seca", pois há enorme vazamento de recursos em benefício de intermediários, burocratas e políticos. Isso testemunha que nossa capacidade de indignação é muito maior que nossa capacidade de organização.José do Patrocínio morreu de tuberculose, cirrose e, porque não dizê-lo, também de pobreza. Esgotara-se sua grande tarefa salvacionista, e com ela murchou seu poder de mobilização. Vivia num casebre e sobrevivia de biscates jornalísticos. Daí, como relata seu filho, uma tragédia irônica. Ao morrer, em 1905, redescobriu-se o "Grande Homem". Providenciaram-se funerais de estado, coches de gala, crepes nos lampiões, cavalos cobertos de pluma negra e seu corpo embalsamado ficou exposto numa igreja por 15 dias. Mas no oitavo dia após a morte, sua família teve de deixar o casebre em que vivia, sob mandato de despejo.José do Patrocínio escolheu para patrono Joaquim Serra, poeta, jornalista e dramaturgo (pois foi um dos fundadores do Teatro de Revista) mas sobretudo um colega de combate nas lutas em favor da Abolição. Segundo André Rebouças, foi o político que mais escreveu contra os escravocratas. Era um filósofo platônico, que se seduziu pelo positivismo de Augusto Comte. Se outros títulos lhe faltassem, bastaria lembrar que a legenda republicana "Ordem e Progresso" foi título do jornal de província que fundara em 1862.Mário de Alencar foi o segundo ocupante da cadeira. Tímido e recluso, ofuscado pela imagem do pai, José de Alencar. Eram dois momentos do Brasil. O pai trouxe-nos a imagística do Brasil primitivo e bravio com caciques, lutas na selva e cachoeiras selvagens. Mário de Alencar, de outro lado, fazia do culto da beleza moral seu estilo de vida. Seu modelo era Sócrates, sábio em vida para ser corajoso na morte. Versava, com um toque de pessimismo que o aproximava de Machado de Assis, temas da vida urbana na poesia e na ensaística. Curiosamente, tendo publicado seus primeiros versos - "Lágrimas" - aos 15 anos, por timidez e excessiva auto-crítica, publicou muito menos do que escreveu. Coube a seus filhos promover a edição do romance "Sombra", além dos poemas "Goethe" e "Prometeu". Como disse Álvaro de Almeyda, detestava oradores e jornalistas e metia-se na solidão para ser livre.O terceiro ocupante foi Olegário Mariano, poeta vocacional. Dizia - "Não pretendo ser mais que um poeta, bastando-me pouco para conseguir tudo". Essa posição é corajosa, pois os poetas, como nada nesse mundo, não têm aceitação unânime. Lembra-nos Gustavo Barroso: "Platão queria banir de sua república ideal os poetas como inimigos da verdade. E Santo Agostinho propunha infamá-los - como aos comediantes". Olegário foi talvez o último dos parnasianos. Ainda aprisionado pelo culto das formas, sem o verso solto do modernismo que surgiria com Manuel Bandeira e Carlos Drumond de Andrade.Ao contrário de seu antecessor, que tinha uma visão pessimista da peripécia humana, Olegário era essencialmente um lírico otimista, de bem com a vida. Foi o poeta das cigarras, dos pássaros, dos cães de rua, dos nomes femininos e dos rios solenes, que moldam as cidades. Releio-o com nostalgia e um certo grau de manso desconforto, pois sempre preferi a diligência das formigas à displicência da cigarras. Alguns dos seus versos são dos mais belos que já vi, como no diálogo das duas sombras no "Água Corrente":"Eu nasci de uma lágrima. Sou flamaDo teu incêndio que devora.Vivo dos olhos tristes de quem ama,Para os olhos nevoentos de quem chora"Personalidade curiosa foi o quarto ocupante, Alvaro Moreyra, jornalista, poeta e teatrólogo que, transposta a fase boêmia da juventude, seduziu-se pela utopia social da Revolução de Outubro de 1917. Declarava-se comunista, mas era mais pose que convicção, pois não tinha suficiente capacidade de odiar para se engajar na luta de classes. Pedia bênção à Deus todos os dias e tinha intimidade com os santos, particularmente São Francisco de Assis, que ele chamava de "Chiquinho". O franciscano, amante dos pobres, dos pássaros e da "Soror Acqua", foi uma espécie de ecologista medieval, pois assim cantou no "Cantico del Sole":"Laudato sia il mio signore per suora acqua,La quale é molto utile et humile et pretiosa et casta".Poeta e depois prosador, Álvaro fabricou alguns dos mais belos poemetos que conheci, como por exemplo no seu livro "A lenda das Rosas":"Pobre cega, porque choram tanto assim estes teus olhos?Não, os meus olhos não choramsão as lágrimas que choramCom saudade dos meus olhos"Alvaro era um poderoso fazedor de aforismos, como esse:- O meu maior prazer é mudar de opinião. Com esse prazer vou evitando a velhice. E confirmou isso. Depois da poesia e do jornalismo, dedicou-se, a partir de 1927, à criação teatral, com seu "Teatro de Brinquedo", que tinha uma legenda de Goethe: "A humanidade divide-se em duas espécies: a dos bonecos, que representa um papel aprendido, e a dos naturais, espécie mais numerosa, de entes que vivem e morrem como Deus os fez".Dias Gomes considera que com "O teatro de brinquedo" Álvaro contribuiu para que o teatro, a única arte que não participara da Semana de Arte Moderna, começasse uma tarefa de renovação que possibilitaria depois a revolução cênica e dramatúrgica dos anos 50 e 60.O quarto ocupante da cadeira foi Adonias Filho. Pertencia em Salvador à "Ação Integralista", sem que isso embaraçasse sua amizade com Jorge Amado, que labutava na "Juventude Comunista". Quando ingressou nesta Academia, já um dos próceres importantes da Revolução de 1964, insistiu em ser recepcionado por Jorge Amado, que então era considerado, em alguns círculos militares, como "subversivo pornógrafo".Adonias pertencia à geração literariamente fecunda da região dos cacaueiros. Foi um romancista anti-romântico, como dizia Jorge Amado, num mundo de espanto e de terror, onde "os seres não são de bondade e ternura, mas sobreviventes que podem virar algozes". Sua significação especial é que marcou uma espécie de "divisor de águas". Ao contrário da literatura dos anos 30, em que a natureza bela e seivosa parecia mais importante que o homem, na literatura de Adonias prevalece o bicho homem, sem doçura e esperança, face a taboleiros árduos e vazios, onde a enxada tinha sempre como alternativa o punhal.Adonias procurou dar dimensão universal ao regionalismo. Rachel de Queiroz nele descobre traços dostoiewskianos diferentemente infletidos. No mestre russo, os elementos dramáticos são impregnados de conflitos religiosos e morais - pecados que levam à danação - enquanto que as personagens de Adonias são ligadas a códigos de instinto, na disputa pela terra, sob as agressões do desemprego, desesperança e vingança. Alguns, como nota Dias Gomes, consideram sua prosa enxuta e sincopada, comparável à de Machado de Assis, Graciliano e Guimarães Rosa, sem ter jamais alcançado prestígio remotamente parecido. Talvez tenha havido uma censura recôndita por causa do seu passado integralista, absurdamente considerado como um desengajamento das questões sociais.Seus primeiros romances, os da zona cacaueira, como "Corpo Vivo", e "Memórias de Lázaro" são romances de vingança e desesperança. Há depois romances da raça negra, da saga de liberação frustrada e finalmente uma terceira fase, a do romance "O forte", passado em Salvador, e já impregnado de paixão, misticismo e rendição à esperança.À parte o mérito literário de seu estilo de tragédia grega, Adonias sempre conseguiu superar disputas ideológicas de personalismo injurioso ou censura à criação cultural. Como disse Dias Gomes: - Saltando o largo fosso das ideologias, mas distinguindo amigos e inimigos, usou seu prestígio para reparar injustiças, defender perseguidos, evitar crueldades.Inclusive, conta-nos Jorge Amado, sustando processos de alguns intelectuais de esquerda que o haviam maltratado e deles se vingariam se chegasse ao poder…"O CASAL DE DRAMATURGOSDizia Langston Hughes, grande poeta negro americano, que "a boa canção é aquela que fica zumbindo teimosamente nos nossos ouvidos". Grande peça teatral é aquela que consegue transformar figuras do palco em presenças do nosso quotidiano e peças do nosso folclore. Sob esse aspecto, Dias Gomes é um grande dramaturgo. Suas criaturas no teatro, e depois no cinema e televisão, - "Zé do burro", "Branca Dias", "Odorico o Bem Amado", "Roque santeiro" e a "Viúva Porcina", são hoje inquilinos de nossa paisagem. É impossível analisar a vida e a obra de Dias Gomes sem mencionar Janete Emmer, sua esposa por 33 anos, que adotou o sobrenome artístico de Clair, apaixonada que era pelo "Clair de Lune", de Debussy. Se Dias Gomes foi um inovador como dramaturgo, Janete foi pioneira nas telenovelas, com sucessos inesquecíveis tais como "Irmãos Coragem", "Selva de Pedra", "O Astro" e "Pecado Capital". Esta foi escrita apressadamente para a TV Globo, a fim de substituir a peça "Roque Santeiro", de seu marido, que ficou suspensa por dez anos, no período mais obscurantista da censura militar. Depois de 1985, "Roque Santeiro" tornou-se um grande sucesso televisivo.Dias Gomes se descreve, em sua interessante e provocante autobiografia, como "Um perseguido precoce". Escreveu sua primeira peça a "Comédia dos moralistas", aos 15 anos e a peça "Pé-de-Cabra", aos 18 anos. Esta fora encomendada por Jaime Costa por antagonismo a Procópio Ferreira, e ironicamente acabou por este próprio encenada, quando Dias Gomes não passava dos 20 anos. Não sem castração pela censura, de dez páginas, incidente que ensinou Dias Gomes a driblar os censores de vários governos, todos de saudável burrice na prática do métier. A peça foi considerada "marxista" numa época em que Dias Gomes nem sequer lera Marx.É difícil escolher, na vasta produção do dramaturgo as melhores obras. Diga-se de início que, apesar de sua versatilidade, escrevendo tanto para o teatro como para o rádio e televisão, Dias sempre considerou o teatro sua principal vocação. Dizia que o teatro é a única arte que usa como expressão "a criatura viva, sensível e mortal". Outras artes como o cinema, a pintura, a escultura, refletem a criatura humana através de imagens captadas, mas não a apresentam viva. Acrescentava que à televisão faltava "poder de conscientização" e "perenidade", enquanto "o teatro respira eternidade". Inconscientemente, Dias Gomes incide num elitismo subliminar. É verdade que o teatro foi originalmente uma arte comunal e, portanto, "popular", como nos anfiteatros gregos. Mas gradualmente se tornou uma arte intimista frequentada pela elite burguesa. A democratização da mensagem viria com a televisão, e hoje a Internet, ambas invenções capitalistas. Jorge Amado escolheu dez peças como sendo o núcleo central da obra de Dias:- "O Pagador de Promessas", "A Revolução dos Beatos", "O Bem Amado", "O Berço do Herói", "A Invasão", "O Túnel", "Os Campeões do Mundo", "Amor em Campo Minado" e "Meu Reino por um Cavalo".Leon Liday, o teatrólogo que mais conhece e admira a obra de Dias Gomes, elege como suas preferidas "O Pagador de Promessas", "O Berço do Herói" e "Vargas"."O Pagador" seria nitidamente realista, o "Berço do Herói" e "O Santo Inquérito" nitidamente expressionistas. Aquela uma sátira mordaz e a segunda um drama histórico-lendário altamente surrealista. "Vargas" é também um drama histórico-lendário, porém musicalizado sob a forma de um samba de enredo. Minhas preferências são pelo tríptico - "O Pagador de Promessas", "O Santo Inquérito" e "A Revolução dos Beatos". As duas primeiras são chamadas por Anatol Rosenfeld, o grande crítico teatral, de "misticismo popular".- "O pagador", esclarece Dias Gomes, em resposta a alguns críticos, não é uma peça anti-clerical. É uma peça contra a ignorância e o fanatismo, uma fábula sobre a liberdade de escolha". Versa três conflitos. O primeiro é o do catolicismo com o sincretismo, advindo da mistura dos símbolos cristãos (Santa Bárbara) com o candomblé (Iansan); o segundo é o do conflito entre o simplismo sincero do sertanejo e o formalismo inflexível do clérigo, o terceiro é o choque psicológico e moral resultante da incapacidade de comunicação entre a ingenuidade cabocla e a malta de jornalistas, rufiões e prostitutas da cidade. Esses exploram o exoticismo arcaico da pobreza do "Zé doBurro"de caminhar 43 quilômetros, dilacerando seus ombros sob cruz pesada, para cumprir promessa feita a Santa Bárbara (ou Iansan) por ter salvo o burro Nicolau. Há um toque rousseaunista no contraste entre o camponês puro e a cidade perversa. O burro humaniza o homem e os homens emburrecidos sacrificam "Zé", o pagador de promessa. A cena do "Zé do Burro", que só cumpriu seu rígido voto depois de morto, quando a multidão arromba as portas da igreja, é de grande pungência.Isso explica o enorme sucesso da peça aqui e no exterior. Desde sua estréia em 1960, foi traduzida para mais de dez línguas e exibida pelo menos seis vezes nos Estados Unidos, e em numerosos outros países dos dois lados da guerra fria. Ganhou em 1962 o prêmio "Palma de Ouro" do Festival de Cannes, numa versão cinematográfica dirigida por Anselmo Duarte. Isso atesta que Dias Gomes conseguiu transformar um drama regional num apelo universal contra a intolerância.A segunda peça de minha preferência é "O Santo Inquérito". A Inquisição não é peculiaridade católica, pois os puritanos de Massachusets queimaram as bruxas de Salem, em 1692, evento recordado pelo grande dramaturgo americano, Arthur Miller, em sua peça "Crucible"."O Santo Inquérito" versa um tema diferente: a colisão entre o sexo e a religião. A bela Branca Dias, que foi vista banhando-se nua à luz do luar, cometeu dois erros: aprendeu a ler, o que lhe facultava leituras proibidas, e beijou na boca o padre Bernardo para livrá-lo do afogamento. Esse piedoso ato de salvação é visto como concupiscência. Branca acaba perdendo as pessoas que mais amava por causa da obsessão de padre Bernardo, que por ela desenvolveu desejos pecaminosos. Oficial do Santo Ofício, procurou induzi-la no processo a retratar-se de faltas que não praticara, como se a confissão do próximo fosse uma auto purificação do pecador.A terceira peça de minha triologia é "A Revolução dos Beatos". Se "O Pagador' é um libelo trágico contra o misticismo fanático, "A Revolução dos Beatos" é um libelo satírico contra a manipulação política do fanatismo religioso. Dessa arma satírica Dias Gomes depois se utilizaria habilmente em peças como "Odorico bem amado" e "Roque Santeiro".Curioso truque de Dias Gomes é a "animalização da bondade". No "Pagador" é o burro Nicolau que tem "alma de gente", e na "Revolução dos Beatos" é o Boi Santo, presenteado pelo político Flório ao Padre Cícero, que fazia milagres. Atendendo, inclusive, à safada súplica de Bastião para induzir Zabelinha a se enrabichar por ele. O último texto que eu gostaria de comentar é a auto-biografia de Dias Gomes, uma mistura deliciosa de humor, história familiar e engajamento político literário.O TEXTO SEM CONTEXTOComentei com maravilhamento alguns textos de Dias Gomes. Falta falar sobre o contexto histórico dos anos da guerra fria, que ele e eu vivenciamos, fazendo ambos apostas divergentes sobre o curso da história. Tanto em seu discurso de posse nesta Academia como em sua auto-biografia, Dias Gomes desfolha um libelo contra os chamados "anos de chumbo" do período militar, com seus excessos repressivos e mutilação das liberdades, esquecendo-se de interpretar a peripécia brasileira no contexto da guerra fria. Não se menciona sequer minimamente alguns aspectos construtivos, como o fato de o Brasil nesses anos ter passado da retaguarda incaracterística dos emergentes para a posição de oitava potência industrial do mundo. E tudo se passa como se o autoritarismo no Brasil fosse uma exótica perversão somente acontecida no Trópico do Capricórnio.Um mínimo de análise histórica comparativa teria levado Dias Gomes a fazer um balanço mais benígno. Samuel Huntington, o famoso politólogo de Harvard, defendeu a tese das ondas e refluxos periódicos da democratização no mundo. Na década dos 60 e começo dos 70 teria havido uma guinada autoritária mundial, de tal forma que um terço das sociais democracias que funcionavam no pós-guerra acabassem interrompendo seus processos democráticos.Na América Latina surgiram vários regimes, que O'Donnell e Huntington chamam de "autoritarismos burocráticos". No Brasil e Bolívia, em 1964; na Argentina em 1966; no Peru em 1968; no Equador em 1972; no Uruguai em 1973. Houve golpes militares na Coréia do Sul em 1961; na Indonésia em 1965; na Grécia em 1966. Em 1975, foi imposta a lei marcial nas Filipinas e Indira Gandhi declarava um regime de emergência na Índia. A rigor, o pioneirismo da guinada autoritária, desta vez em favor da esquerda, foi o de Fidel Castro em Cuba, o qual ascendeu ao poder em 1959, aderiu ao comunismo pouco depois e aparentemente não tem planos para deixar o poder.É paradisíaca a visão até hoje mantida por vários intelectuais de esquerda que o Brasil em 1964 tinha uma opção tranqüila entre a liberal democracia e a social democracia. A real opção era entre um autoritarismo de esquerda e um autoritarismo de centro direita, que se dizia transicional. No Brasil, tivemos um autoritarismo encabulado, que se sabia biodegradável, que admitia o pluripartidarismo, que mantinha, ainda que manipuladas, instituições democráticas, que postulava a restauração democrática como objetivo último da evolução social. Isso é diferente dos autoritarismos totalitários, ideologicamente rígidos, sanguinários quanto a dissidentes, e convictos de que o determinismo histórico asseguraria a ditadura da classe eleita - o proletariado.Melancólicas veramente eram nossas alternativas nos primeiros anos da década dos 60, quando a guerra fria atingia seu apogeu:- ou anos de chumbo ou anos de aço. Alhures, os anos de aço duraram 72 anos na União Soviética, quase meio século na Cortina de Ferro e ainda há espécimes ditatoriais sobreviventes.Dias Gomes tem razão em verberar, a posteriori, a idiotice da censura, o sofrimento de idealistas torturados, o amargor dos exilados. Que esses dilaceramentos do tecido social não se repitam mais.Mas os anos de chumbo tiveram derretimentos que jamais ocorreriam se tivéssemos "anos de aço". Um "derretedor de chumbo" já citado, foi Adonias Filho que combatia as ideologias mas respeitava os ideólogos. Outro foi nosso ilustre confrade Roberto Marinho. As "Organizações Globo", tidas como bastião do capitalismo reacionário, deram, no interregno autoritário, guarida a vários intelectuais e artistas de esquerda, que receberam sustento sem exigência de conformismo esterilizante.Desde 1969 foi lá que se abrigaram Dias Gomes e Janete, por quase três décadas, para produzir obras que serão o encanto de várias gerações. Não sofreram constrangimentos ideológicos, como reconhece o próprio Dias. E os profissionais da organização o ajudaram-no muitas vezes a driblar a censura e a preservar, sob pseudônimos, a mensagem fundamental do dramaturgo.Uma vez, conversando com o nosso ilustre confrade Roberto Marinho, apontei-lhe contradições entre o tom conservador dos editoriais, de um lado, e os cabeçalhos e noticiários enviezados, de outro, que desmereciam a classe empresarial e as idéias liberais.Definitivamente, nosso confiável confrade nem sempre dá conselhos confiáveis. Quando lhe pedi que partilhasse comigo o segredo de sua fecunda longevidade, respondeu-me: saltar a cavalo e fazer pesca submarina. - Logo eu... que não gosto de cavalos e detesto o cheiro de peixe.Digo estas coisas para acentuar o contraste entre a repressão dos "anos de chumbo" e o que seria a repressão dos "anos de aço", que teríamos de atravessar se vitoriosa a aposta de muitos de nossos intelectuais na opção comunista. Consideremos o diferencial de sofrimento.Dois dos maiores nomes da literatura mundial - Boris Pasternak e Solzhenitsyn - ganharam o prêmio Nobel em 1958 e 1975, respectivamente, durante os anos de aço. E experimentaram incríveis perseguições. Foram ambos expulsos da União dos Escritores Soviéticos, o que naquele regime fechado significa desemprego e morte civil. Solzhenitsyn foi preso em 1974, acusado de traição pela publicação, no exterior de sua grande obra "O Arquipélago Gulag". Na Rússia somente 25 anos depois foi autorizada sua publicação na revista literária "Novy Mir". Foi exilado da União Soviética, passando a viver nos Estados Unidos e só então poude ter acesso ao seu Prêmio Nobel.Pasternak teve de renunciar ao Prêmio Nobel. Sua obra prima - Dr. Zhivago - que chegara ao exterior em 1957, através de manuscritos contrabandeados, só foi autorizada na Rússia em 1985, 28 anos depois! Consta que só escapou dos expurgos de Stalin, nos anos 30, porque havia traduzido para o russo poemas de poetas georgeanos, compatriotas de Stalin.Dolorosa foi a carreira de Ana Akhmatova, talvez a maior poetisa russa desde Puskhin. Seu marido foi executado em 1921 e seu filho preso e exilado para a Sibéria em 1949, ambos por "não conformistas". O Comitê Central do Partido Comunista condenou sua obra poética em 1946 por seu "eroticismo, misticismo e indiferença política". Foi também expulsa da União dos Escritores Soviéticos e por três anos proibida de escrever qualquer coisa. Sua mais longa obra, "Poema Sem Herói", escrita entre 1940 e 1962, só teve sua publicação autorizada 14 anos depois.Outra grande figura da física nuclear, Sakharov, que ganhou o Prêmio Nobel da Paz em 1975, foi em 1980 despojado de todos os seus títulos e vantagens como grande cientista, e exilado para a cidade fechada de Gorki. Só em 1986, após a "glasnost" de Gorbachev foi autorizado a retornar a Moscou.Definitivamente os "anos de aço" foram mais brutais que os "anos de chumbo".Nem adianta dizer que a utopia socialista não se realizou na Rússia, mas realizar-se-ia alhures. Há uma brutalidade ínsita no marxismo-leninismo, que se manifestou tanto no socialismo louro da Europa Oriental, como no socialismo moreno do Caribe, no socialismo negro dos africanos e no socialismo amarelo da China e do Vietnam. A violência é da natureza da besta...CONVITE TRISTEAgora que conheço bem a obra de Dias Gomes, lamento não tê-lo conhecido em pessoa. Minha paisagem humana e cultural ficou com isto muito mais pobre. Se o encontrasse, seduzi-lo-ia para um encontro de fim de tarde, recitando-lhe o "Convite triste", de Carlos Drummond de Andrade."Meu amigo, vamos sofrer,vamos beber, vamos ler jornal,vamos dizer que a vida é ruim,meu amigo, vamos sofrer.Vamos fazer um poemaou qualquer outra besteira...Vamos, beber uísque, vamos...Eu lhe prometeria que não seria uísque nacional e que falaríamos mal do Governo, qualquer Governo. Pois, como dizia Milton Campos, "falar mal do Governo é uma coisa tão gostosa que não pode ser privilégio da oposição".Certo estou que ao fim de algumas rodadas, talvez na curva do conhaque, estaríamos do mesmo lado da cerca, concordando com as seguintes premissas:- "Todas as revoluções passam e, como nos alertou Franz Kafka, "só fica o lodo de uma nova burocracia";- Só há uma coisa errada com a palavra revolução. É a letra R;- Há gente demais levantando muros e gente de menos construindo pontes.Que pena, não ter tido um "papo cabeça" com Dias Gomes. Que pena, m,eu Deus…NA VIRADA DO MILÊNIOEspera-se de um economista que diga algo sobre perspectivas econômicas. Hesito em fazê-lo, não só porque é perigoso profetizar (especialmente sobre o futuro), como porque minha profissão não está em odor de santidade. Diz o populacho que nossos prognósticos são ainda menos confiáveis que as previsões meteorológicas do INPE e que quem acredita nos planejadores econômicos deveria olhar para o camelo: "é um cavalo desenhado por um comitê de economistas". Chego a esta Academia em fim de século e começo de milênio. Este século foi o pior dos séculos. Este século foi o melhor dos séculos… Foi o pior dos séculos porque, em duas guerras mundiais e em conflitos ideológicos, religiosos, raciais e tribais, estima-se que pereceram cerca de 170 milhões de pessoas. Mais que o total de mortos em guerras, desastes e pestes desde o começo da história humana. E foi também o melhor dos séculos, porque nele houve coisas milagrosas:- A descoberta do segredo do átomo (para o bem ou para o mal);- A descoberta do segredo da vida (a dupla hélice);- A morte da distância e o encurtamento do tempo;- A escapulida de nossa prisão orbital, para bolinarmos outros planetas e, quiçá, estrelas;- O rompimento, por centenas de milhões de pessoas, dos grilhões da pobreza ancestral.A pobreza deixou de ser uma fatalidade, para se tornar o subproduto de opções erradas e os desvios de comportamento. Conhece-se, hoje, a grande síntese do crescimento: estabilidade de preços na macroeconomia; competição na microeconomia; abertura internacional; e investimentos massiços no capital humano. "De nada valem a torre nem a nave", dizia Sófocles, "sem o homem".A sociedade do próximo milênio será uma sociedade globalizada e digitalizada. Ignorar essas coisas seria auto-mutilação. Nossa linguagem girará em termos de bits, muito mais que de "átomos". Na era digital, até os "literatos" terão de virar "digeratos".A primeira coisa a fazer-se no Brasil é abandonarmos a chupeta das utopias em favor da bigorna do realismo. É tempo de balanço e autocrítica. E, sobretudo, de ginástica institucional, a fim de nos prepararmos para a quarta onda de crescimento do pós-guerra, que provavelmente advirá na primeira década do milênio, apoiada em três revoluções tecnológicas:- A revolução da Internet, que eliminará vários constrangimentos de tempo e espaço;- A revolução da engenharia genética, que depois do facasso da engenharia social em reformar o homem moral, pode ter sucesso na reformatação do homem físico; - A revolução da nano-tecnologia que, pela miniaturização, substituirá nos produtos, cada vez mais o insumo físico pelo insumo cognitivo.Para a minha geração, confiante em que o Brasil chegaria ao ano 2000 não como país emergente e sim como grande potência, forte e justa, este fim de século é melancólico. Estamos ainda longe demais da riqueza atingível, e perto demais da pobreza corrigível. Minha geração falhou. Confiteor.Agradeço aos benévolos confrades terem aceito em sua grei uma personalidade controvertida. Prometo-vos, em verdade vos prometo, agir como os mulçumanos que descalçam suas sandálias na porta da mesquita, para não contaminá-la com a poeira, o barro e o estrume das ruas. Descalçarei minhas botas ideológicas nos umbrais desta Casa. E aqui obedecerei fielmente à regra de Joaquim Nabuco, em seu discurso inaugural de secretário geral, na sessão de 20 de julho de 1897:"Eu confio, disse ele, que sentiremos todos o prazer de concordar em discordar; essa desinteligência essencial é a condição da nossa utilidade, o que nos preservará da uniformidade acadêmica. Mas o desacordo tem também o seu limite, sem o que começaríamos logo por uma dissidência". Interpreto meu ingresso nesta Academia, menos como uma sóbria avaliação de meus méritos pessoais, do que como uma homenagem ao meu estado natal - Mato Grosso - que nos 102 anos de vida deste sodalício só teve um representante, Dom Aquino Correia, arcebispo de Cuiabá, falecido em 1956. Era filósofo, escritor e poeta, capaz de versejar com igual aisance em latim e em português. Personalidade eminente e pacificadora, foi também presidente do Estado, em situação emergencial, unindo assim o poder espiritual do arcebispado com o poder temporal da governança. Essa fusão dos dois poderes era privilégio dos papas antigos. Certamente não espero repetir tal façanha, mas espero não desmerecer da presença culta de Dom Aquino neste sodalício, nem apequenar a representação de meu Estado.Agradeço a presença do governador em exercício de Mato Gosso, José Rogério Salles, e do eminente presidente da Academia Matogrossense de Letras, João Alberto Gomes Novis Monteiro, da qual me honro de ser membro.Tenho também uma cidade-pátria adotiva, o Rio de Janeiro. Seu ilustre prefeito aqui presente, Luiz Paulo Conde, urbanista de reputação que já transpôs nossas fronteiras, costuma honrar-me dizendo que sou senador pelo Rio de Janeiro, pois ganhei eleições aqui na metrópole, perdendo no resto do Estado porque nem todo o mundo tem o bom gosto dos cariocas…Agradeço ao excelentíssimo senhor presidente da República ter enviado como seu representante o ilustre ministro do Trabalho, Francisco Dornelles, meu dileto amigo, com quem fiz várias campanhas políticas, de resultados curiosos: eu pedia votos para mim e os votos iam para ele…Com Fernando Henrique convivi oito anos no Senado Federal e tínhamos férvidos debates sobre capitalismo e liberalismo. Referindo-se ele a um artigo que escrevi sobre liberalismo, disse que, apesar de algumas discordâncias, considerava-o de alto nível. Ao que lhe respondi:- Pudera… escrito no avião, entre Brasília e Rio, a 10.000 mt de altitude, só poderia ser de alto nível…Agradeço ainda a presença do ilustre senador Antonio Carlos Magalhães, presidente do Congresso, meu velho amigo de andanças e paranças, cujo filho Luiz Eduardo até hoje relembro com dolorida saudade. Agradeço também a presença do presidente da Câmara dos Deputados, Dr. Michael Temer, sob cujas ordens trabalhei. Poderá ele atestar que fui um deputado presente e diligente, e diria até agradável, pois não aborrecia o Plenário com grandes falações.Agradeço, finalmente à minha família, Stella, Roberto, Sandra e Luiz Fernando, por tolerarem minhas ausências e impaciências ao longo de campanhas políticas e acadêmicas. Para os que me consideram proprietário de uma visão pessimista da história, não gostaria de terminar o milênio com uma nota melancólica. E usarei uma expressão do grande filósofo liberal Raymond Aron, menos popular que Sartre em seus dias, mas muito mais correto em suas previsões de futuro: "nós perdemos o gosto das profecias, mas não esqueçamos o dever da esperança."