segunda-feira, 25 de junho de 2012

Como o STF chancelou o monopólio estatal dos Correios.

O TEXTO ABAIXO FOI ESCRITO PARA O SITE DO INSTITUTO LUDWIG VON MISES BRASIL (http://www.mises.org.br/)

No dia 26 de outubro de 2010, Leandro Roque, editor e tradutor do site do Instituto Ludwig von Mises Brasil, escreveu um texto intitulado "A urgente necessidade de se desestatizar os Correios", o qual foi republicado no dia 16 de junho de 2012.
No texto, Leandro deixa claro por que a desestatização da produção de qualquer bem ou da prestação de qualquer serviço será sempre benéfica para os consumidores, e por que, ao revés, a estatização será sempre maléfica, beneficiando apenas burocratas, políticos e sindicalistas.
No presente texto, contarei para vocês uma história que poucos conhecem, sobretudo os que não são da área jurídica. Trata-se de um processo que tramitou no Supremo Tribunal Federal, a ADPF (Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental) 46, ajuizada pela ABRAED (Associação Brasileira das Empresas de Distribuição) contra a ECT (Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos), na qual foi questionada a constitucionalidade da Lei nº 6.538/1978, que "dispõe sobre os serviços postais" no Brasil. Esta lei não apenas assegura o monopólio dos serviços postais aos Correios (arts. 2º e 9º), como considera crime a "violação do privilégio postal da União" (art. 42).
Na petição inicial, que pode ser lida na íntegra aqui, a ABRAED alegou que a lei questionada afrontaria as seguintes regras da nossa Constituição Federal de 1988: art. 1º, inciso IV; art. 5º, inciso XIII; e art. 170, caput, inciso IV e parágrafo único. Tais regras possuem a seguinte redação:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
(...)
IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(...)
XIII - é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer;

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
(...)
IV - livre concorrência;
(...)
Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.

A ABRAED ajuizou a ação porque os Correios estavam ingressando com várias medidas judiciais contra empresas de distribuição que prestavam serviços de entrega de malotes, jornais, revistas, contas de água e luz etc. Em tais ações, os Correios alegavam ter o monopólio de todo e qualquer serviço postal e tentavam impedir tais empresas de distribuição de continuar exercendo livremente suas atividades. Um absurdo, mas, infelizmente, chancelado pela legislação!
A ABRAED não requereu o fim do monopólio dos Correios, mas apenas que ele ficasse restrito especificamente a cartas, entendidas estas como "papel escrito, envelopado, selado, enviado de uma parte a outra com informações de cunho pessoal".
Em um longo, bem escrito e percuciente voto, o qual pode (e deve!) ser lido na íntegra aqui, o relator do processo, Ministro Marco Aurélio, decidiu pela procedência da ação, entendendo que o monopólio estatal dos Correios "viola os princípios da livre iniciativa, da liberdade no exercício de qualquer trabalho, da livre concorrência e do livre exercício de qualquer atividade econômica"[1].
No entanto, todos os demais Ministros discordaram. Ao final, prevaleceu a tese do Ministro comunista[2] Eros Grau. Sem conseguir rebater os irrefutáveis argumentos de Marco Aurélio, Eros Grau saiu pela tangente e começou seu voto assim:

Acabamos de ouvir um longo voto, muito bonito desde o seu primeiro momento, quando o Ministro relator começou fazendo uma exposição sobre a interpretação, o círculo hermenêutico, a pré-compreensão, temas que entendo fascinantes. Mas vou pedir vênia para divergir. Diria, inicialmente, que toda a exposição atinente à atividade econômica em sentido estrito perde o sentido porque o serviço postal é serviço público.

Mais adiante, repetiu o falso argumento:

O serviço postal não consubstancia atividade econômica em sentido estrito, a ser explorada por empresa privada. Por isso é que a argumentação em torno da livre iniciativa e da livre concorrência acaba caindo no vazio, perde o sentido.

Como a refutação do longo e bem articulado voto do Ministro Marco Aurélio era impossível, em seu curto e insosso voto Eros Grau apelou para frases de efeito como "a realidade social é o presente; o presente é vida; e vida é movimento". E ainda achou espaço para incluir no seu voto a seguinte pérola:

No Brasil, hoje, aqui e agora — vigente uma Constituição que diz quais são os fundamentos do Brasil e, no artigo 3º, define os objetivos do Brasil [porque quando o artigo 3º fala da República Federativa do Brasil, está dizendo que ao Brasil incumbe construir uma sociedade livre, justa e solidária] — vigentes os artigos 1º e 3º da Constituição, exige-se, muito ao contrário do que propõe o voto do Ministro relator, um Estado forte, vigoroso, capaz de assegurar a todos existência digna. A proposta de substituição do Estado pela sociedade civil, vale dizer, pelo mercado, é incompatível com a Constituição do Brasil e certamente não nos conduzirá a um bom destino.

O Ministro Joaquim Barbosa acompanhou a tese do comunista Eros Grau e também se achou no direito de proferir sua pérola, ao afirmar o seguinte:

Uma análise pormenorizada do que consubstanciaria o serviço postal conduz inafastavelmente à constatação de que o interesse primordial em jogo é o interesse geral de toda a coletividade. É do interesse da sociedade que, em todo e qualquer município da Federação, seja possível enviar/receber cartas pessoais, documentos e demais objetos elencados na legislação, com segurança, eficiência, continuidade e tarifas módicas. Não é mera faculdade do Poder Público colocar esse serviço à disposição da sociedade, e muito menos deixar sua completa execução aos humores do mercado, informado por interesses privados e econômicos.

Viram só? O Ministro Joaquim Barbosa acha que a melhor forma de assegurar serviços postais seguros, eficientes, contínuos e baratos para todos é entregar esses serviços a uma estatal monopolista. Se eu fosse um Ministro presente naquela sessão de julgamento, eu o interpelaria sem titubear: "Ministro Joaquim, vamos estatizar toda a economia, a fim de que em todas as áreas do mercado tenhamos empresas estatais oferecendo bens e serviços de forma eficiente, segura, contínua e barata?" O perigo era ele não entender que eu estava sendo irônico e responder: "Vamos!"
O Ministro Carlos Ayres Britto, outro conhecido por proferir pérolas nas sessões de julgamento do STF[3], também votou pela manutenção do monopólio estatal dos Correios. Ele disse que os Correios precisam ser monopolistas para "favorecer a comunicação privada entre pessoas, a integração nacional e o sigilo da correspondência". Mais um que acredita que estatais monopolistas são melhores prestadoras de serviços e fornecedoras de bens do que empresas privadas atuando em regime de livre competição.
No final das contas, os Correios, como era de se esperar, mantiveram seu monopólio estatal[4], mas com uma importante ressalva, felizmente. Os Ministros excluíram do monopólio a distribuição de boletos, jornais, livros e periódicos. Menos mal. Confiram a ementa do julgado:

"ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. EMPRESA PÚBLICA DE CORREIOS E TELEGRÁFOS. PRIVILÉGIO DE ENTREGA DE CORRESPONDÊNCIAS. SERVIÇO POSTAL. CONTROVÉRSIA REFERENTE À LEI FEDERAL 6.538, DE 22 DE JUNHO DE 1978. ATO NORMATIVO QUE REGULA DIREITOS E OBRIGAÇÕES CONCERNENTES AO SERVIÇO POSTAL. PREVISÃO DE SANÇÕES NAS HIPÓTESES DE VIOLAÇÃO DO PRIVILÉGIO POSTAL. COMPATIBILIDADE COM O SISTEMA CONSTITUCIONAL VIGENTE. ALEGAÇÃO DE AFRONTA AO DISPOSTO NOS ARTIGOS 1º, INCISO IV; 5º, INCISO XIII, 170, CAPUT, INCISO IV E PARÁGRAFO ÚNICO, E 173 DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. VIOLAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA LIVRE CONCORRÊNCIA E LIVRE INICIATIVA. NÃO-CARACTERIZAÇÃO. ARGUIÇÃO JULGADA IMPROCEDENTE. INTERPRETAÇÃO CONFORME À CONSTITUIÇÃO CONFERIDA AO ARTIGO 42 DA LEI N. 6.538, QUE ESTABELECE SANÇÃO, SE CONFIGURADA A VIOLAÇÃO DO PRIVILÉGIO POSTAL DA UNIÃO. APLICAÇÃO ÀS ATIVIDADES POSTAIS DESCRITAS NO ARTIGO 9º, DA LEI.
1. O serviço postal —- conjunto de atividades que torna possível o envio de correspondência, ou objeto postal, de um remetente para endereço final e determinado —- não consubstancia atividade econômica em sentido estrito. Serviço postal é serviço público.
2. A atividade econômica em sentido amplo é gênero que compreende duas espécies, o serviço público e a atividade econômica em sentido estrito. Monopólio é de atividade econômica em sentido estrito, empreendida por agentes econômicos privados. A exclusividade da prestação dos serviços públicos é expressão de uma situação de privilégio. Monopólio e privilégio são distintos entre si; não se os deve confundir no âmbito da linguagem jurídica, qual ocorre no vocabulário vulgar.
3. A Constituição do Brasil confere à União, em caráter exclusivo, a exploração do serviço postal e o correio aéreo nacional [artigo 20, inciso X].
4. O serviço postal é prestado pela Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos — ECT, empresa pública, entidade da Administração Indireta da União, criada pelo decreto-lei n. 509, de 10 de março de 1.969.
5. É imprescindível distinguirmos o regime de privilégio, que diz com a prestação dos serviços públicos, do regime de monopólio sob o qual, algumas vezes, a exploração de atividade econômica em sentido estrito é empreendida pelo Estado.
6. A Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos deve atuar em regime de exclusividade na prestação dos serviços que lhe incumbem em situação de privilégio, o privilégio postal.
7. Os regimes jurídicos sob os quais em regra são prestados os serviços públicos importam em que essa atividade seja desenvolvida sob privilégio, inclusive, em regra, o da exclusividade.
8. Argüição de descumprimento de preceito fundamental julgada improcedente por maioria. O Tribunal deu interpretação conforme à Constituição ao artigo 42 da Lei n. 6.538 para restringir a sua aplicação às atividades postais descritas no artigo 9º desse ato normativo."
(ADPF 46, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão: Min. EROS GRAU, Tribunal Pleno, julgado em 05/08/2009, DJe-035 DIVULG 25-02-2010 PUBLIC 26-02-2010 EMENT VOL-02391-01 PP-00020)

Que o monopólio estatal é péssimo, sobretudo para o consumidor, qualquer pessoa sensata sabe. Essas pessoas também sabem que monopólios estatais não são apenas ineficientes, mas antros de corrupção e de toda sorte de baixaria do mundo político e burocrático. Os Correios, evidentemente, não fogem a essa regra[5].
Mas e daí? À luz da Constituição, era preciso encontrar uma interpretação jurídica que acabasse com o monopólio estatal dos Correios. Os Ministros do STF tiveram a chance de fazê-lo no julgamento da ADPF 46, mas, com exceção do Ministro Marco Aurélio, fugiram do verdadeiro debate — livre iniciativa e livre concorrência são ruins para o consumidor? Um monopólio estatal atende melhor o consumidor do que um mercado desimpedido e competitivo? — e caíram no falacioso argumento do comunista Eros Grau, para quem "serviços públicos" não configuram "atividade econômica em sentido estrito" e, pois, são insuscetíveis de prestação pela iniciativa privada, sabe-se lá por quê? Sabendo que a expressão "monopólio" tem um sentido pejorativo, Eros Grau usou um eufemismo — "privilégio legal" — e conseguiu vencer a sua "luta de classes"[6]. Pior para todos nós, defensores da liberdade econômica.

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[1] O voto tem trechos muito bons, em que o Ministro faz uma defesa firme e consistente da livre iniciativa e da livre concorrência e faz críticas acerbas ao monopólio estatal de qualquer atividade econômica. No entanto, o Ministro parece não defender uma total desestatização do setor, já que flerta em alguns momentos com a ideia do Estado regulador. Sobre o assunto, nunca é demais relembrar os excelentes textos de Leandro Roque sobre as privatizações brasileiras (http://www.mises.org.br/Article.aspx?id=637 e http://www.mises.org.br/Article.aspx?id=646), nos quais ele, mais uma vez, deixa claro que privatizar sem desestatizar é insuficiente, representando, quando muito, uma mera mudança de endereço dos burocratas, que saíram das vetustas estatais e foram para as modernas agências reguladoras, facilmente capturadas pelos amigos do rei.

[2] Não sabia que Eros Grau é comunista? Então leia isso aqui: Sim, o Ministro comunista, hoje aposentado, confessou que tentava preservar a utopia do comunismo nos votos que proferia. Com certeza esse foi um dos votos em que ele fez isso, não é mesmo?

[3] Em seu voto na ação que pedia aos casais homossexuais os mesmos direitos dos heterossexuais, ele afirmou que "o órgão sexual é um plus, um bônus, um regalo da natureza". No julgamento sobre a Lei da Ficha Limpa, ele se saiu com essa: "enquanto o indivíduo é gente, o membro do poder é agente. Para sair da singela condição de gente para a de agente, é preciso maior qualificação, e essa é a razão de ser da Ficha Limpa". Que erudição!

[4] Nesses julgamentos eu sempre me lembro de uma advertência feita por Hans-Hermann Hoppe: "Atualmente, o que ocorre é que, na eventualidade de um conflito entre um cidadão e o estado, será sempre o estado (ou um juiz que é empregado do estado) quem irá decidir quem está certo. Se o estado decidir, por exemplo, que eu tenho de pagar a ele mais impostos e que eu não posso permitir que pessoas fumem no restaurante do qual sou o dono, e se eu não concordar com nenhuma destas decisões, o que posso fazer a respeito? Posso apenas recorrer a um tribunal estatal, cujos juízes — muito bem remunerados com o dinheiro coletado pelo estado via impostos — são pagos para impingir as regulamentações do governo. E o que estes juízes, com toda a probabilidade, irão decidir? Que tudo isto é legal, obviamente!".

[5] http://pt.wikipedia.org/wiki/Esc%C3%A2ndalo_dos_Correios.

[6] Pelas informações sobre o julgamento que constam do site do próprio STF, o CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) não se manifestou como interessado para defender a livre iniciativa e a livre concorrência. Isso é estranho, porque no site do Ministério da Justiça há um link que explica para que servem o CADE e os demais órgãos integrantes do SBDC (Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência), e lá é possível ler o seguinte: "A defesa da concorrência preocupa-se com o bom funcionamento do sistema competitivo dos mercados. Ao se assegurar a livre concorrência, garante-se não somente preços mais baixos, mas também produtos de maior qualidade, diversificação e inovação, aumentando, portanto, o bem-estar do consumidor e o desenvolvimento econômico. A defesa da concorrência não se presta a proteger o concorrente individual, mas sim a coletividade, que se beneficia pela manutenção da concorrência nos mercados. O consumidor, portanto, é sempre o beneficiário final das normas de defesa da concorrência". Talvez se o CADE, autoridade estatal, tivesse explicado isso ao comunista Eros Grau e seus seguidores, o julgamento da ADPF 46 tivesse outro desfecho.

A nova lei antitruste brasileira: uma lei de agressão à livre concorrência.

O TEXTO ABAIXO FOI ESCRITO PARA O SITE DO INSTITUTO LUDWIG VON MISES BRASIL (http://www.mises.org.br/)

Introdução

Hoje, dia 29 de maio de 2012, entra em vigor a Lei nº 12.529, publicada em 30 de novembro de 2011, mas submetida, dada a sua relevância, a um vacatio legis de 180 (cento e oitenta) dias.
Basicamente, essa lei "estrutura o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência e dispõe sobre a prevenção e repressão às infrações contra a ordem econômica". É a nossa nova lei antitruste, que substituirá a Lei nº 8.884/1994.
O principal órgão criado e disciplinado pela legislação antitruste é o CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica), cujas principais atribuições, em linhas gerais, são as seguintes: (i) analisar preventivamente atos de concentração empresarial, como fusões e incorporações de empresas (controle de estruturas), (ii) punir agentes econômicos que atentem contra a ordem econômica, praticando atos como cartéis ou preços predatórios (repressão de condutas) e (iii) difundir a chamada "cultura da concorrência" pelo País (advocacia da concorrência).
A nova lei altera a estrutura do SBDC (Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência) e traz também algumas mudanças importantes no procedimento de análise dos atos de concentração empresarial. Quanto à estrutura, o que há de mais relevante é a "transformação" da antiga Secretaria de Direito Econômico, antes ligada ao Ministério da Justiça, em Superintendência Geral, órgão agora integrante do próprio CADE. Quanto ao procedimento, a grande mudança é na previsão de análise prévia dos atos de concentração — no regime da lei revogada, as empresas tinham até 15 (quinze) dias úteis após a realização do ato de concentração para submetê-lo ao exame do CADE.
Meu objetivo neste artigo, porém, não é discutir o que a lei nova muda em relação à lei anterior, mas questionar a própria necessidade de uma legislação de "defesa" da concorrência.
Em um estudo recente que coordenei, por ocasião do II Congresso Brasileiro de Direito Comercial[1], procurei demonstrar que leis e órgãos antitruste são a verdadeira antítese da livre concorrência e que, por conseguinte: (i) o CADE deveria ser abolido e (ii) sua lei de regência deveria ser revogada.
Nas linhas a seguir, tentarei resumir os argumentos contidos no referido estudo, focando em três pontos: (i) as leis antitruste foram forjadas sobre mitos e falácias; (ii) o direito antitruste é embasado em uma teoria econômica falha; e (iii) os burocratas que ocupam os órgãos antitruste não possuem superpoderes e não podem, portanto, controlar o mercado.

1. Os mitos e falácias que forjaram a criação das leis antitruste

Grosso modo, pode-se dizer que a origem das leis antitruste hoje vigentes, inclusive a brasileira, é o Sherman Act, a lei antitruste americana, de 2 de julho de 1890, complementada posteriormente pelo Clayton Act, de 1914, e pela lei que criou, no mesmo ano, o Federal Trade Comission, a agência antitruste americana, na qual o nosso CADE se inspirou.
Segundo os manuais de direito antitruste (aqui também chamado de direito concorrencial ou direito econômico), o Sherman Act foi editado numa época em que a economia americana assistia à formação de grandes grupos monopolistas, que lucravam às custas dos consumidores praticando preços abusivos. Chega-se a afirmar que o Sherman Act teria sido a salvação do liberalismo, que estaria sendo destruído pelo excesso de liberdade econômica, causadora de concentrações monopolísticas que distorciam as regras naturais de competição.
A propósito, confira-se o que afirmam dois dos mais respeitados especialistas em direito antitruste no Brasil sobre as origens do Sherman Act:

A exposição dos fatores político-econômicos relevantes para aprovação do Sherman Act permite focalizar corretamente a questão. Em primeiro lugar, fica bastante evidente que a maior preocupação relativamente aos monopólios naquela época eram os efeitos econômicos negativos sobre o consumidor.[2]

O Sherman Act de 1890 representa, para muitos, o ponto de partida para o estudo dos problemas jurídicos relacionados à disciplina do poder econômico. Com efeito, essa legislação deve ser entendida como o mais significativo diploma legal que corporificou a reação contra a concentração de poder em mãos de alguns agentes econômicos, procurando discipliná-la. Não se deve dizer que o Sherman Act constitui uma reação ao liberalismo econômico, pois visava, justamente, a corrigir distorções que eram trazidas pela excessiva acumulação de capital, ou seja, corrigir as distorções criadas pelo próprio sistema liberal. Não obstante a opinião contrária de parte da doutrina norte-americana, o Sherman Act tratou, em um primeiro momento, de tutelar o mercado (ou o sistema de produção) contra seus efeitos autodestrutíveis.[3]

O estudo da História, porém, mostra que a afirmação de que o Sherman Act surgiu para proteger o ambiente concorrencial e, consequentemente, os consumidores é uma falácia.
Dominick Armentano, professor emérito da Universidade de Hartford e talvez o mais especializado estudioso das leis antitruste ligado à Escola Austríaca de Economia, afirma que as leis antitruste "foram criadas precisamente para serem usadas pelos concorrentes menores para arrasar concorrentes mais eficientes".[4]
Outro estudioso ligado à Escola Austríaca que compartilha dessa opinião é o professor da Loyola University Thomas DiLorenzo, para quem "na verdade, a história do antitruste tem sido uma história de caça às bruxas lançada contra as empresas mais inovadoras e empreendedoras da América"[5].
Ninos P. Malek, PhD em Economia pela George Mason University, é mais enfático ainda, afirmando que as leis antitruste, na verdade, são "um porrete usado por empresas contra seus concorrentes com melhor desempenho"[6].
Como dito, basta estudar a História com um pouco de cuidado para identificar as mentiras sobre as quais foi construído todo o arcabouço normativo que fundamenta o direito antitruste.
Analisando a economia americana no período das discussões sobre o Sherman Act e no início de sua vigência, Thomas DiLorenzo verificou que as empresas acusadas de monopolização dos mercados estavam aumentando sua produção e reduzindo seus preços num ritmo muito maior do que o resto da economia como um todo. Nas suas palavras:

Num estudo publicado em junho de 1985 na International Review of Law and Economics, eu mostrei que as indústrias acusadas de 'monopolização' pelo senador Sherman e seus colegas em 1890 estavam expandindo sua produção quatro vezes mais rápido do que a economia como um todo (algumas até dez vezes mais rápido) e baixando os seus preços ainda mais rápido do que o nível geral de preços estava caindo durante aquele período deflacionário.[7]

Alguns casos históricos são realmente impressionantes, como o da ALCOA, uma das empresas que foi acusada de "monopolização" na fase inicial do direito antitruste americano. Mas sabem qual é a verdadeira história desse caso, contada em detalhes por Dominick Armentano? A ALCOA foi fundada em 1887, quando ela se chamava Pittsburgh Reduction Company e a libra de alumínio custava 5 dólares. Em aproximadamente 50 anos, ela passou a dominar o mercado de alumínio, razão pela qual foi acusada, em 1937, de "monopolização". Ocorre que durante esse período ela, com base na sua eficiência, reduziu o preço da libra de alumínio para ínfimos 22 centavos de dólar. Em suma: a ALCOA foi processada porque reduziu em aproximadamente 95% o preço final do produto que comercializava[8].
Outro caso conhecido é o da Standard Oil, de John Rockfeller, acusada de monopolizar a indústria do petróleo, praticar preços predatórios para destruir rivais e cobrar preços abusivos de seus consumidores[9]. Na verdade, durante o suposto "monopólio" da Standard Oil o preço do barril de querosene caiu de 30 centavos para 6 centavos[10].
Foi esse tipo de efeito negativo sobre os consumidores provocado pelos "monopólios" que preocupou os criadores do Sherman Act e todas as leis antitruste que o copiaram? Claro que não! Obviamente, não eram os consumidores que estavam preocupados com essa postura das empresas "monopolistas" de aumentar a produção e baixar os preços. Quem estava preocupado com isso eram os concorrentes dessas empresas, e foram eles que passaram a pressionar os políticos a aprovarem uma lei antitruste.
Quem mais pressionou o governo para aprovação do Sherman Act foram os pequenos produtores rurais, por meio de seus sindicatos (os grangers). Esses pequenos produtores não estavam agindo em defesa da liberdade econômica ou dos consumidores, mas de seus próprios interesses, já que grandes empresas — como a Swift — estavam lhes tomando mercado oferecendo produtos mais baratos e melhores.[11]
A afirmação de que a lei antitruste americana foi criada para combater efeitos nocivos de supostos monopólios é, portanto, uma falácia cuidadosamente forjada ao longo de anos. A real história americana do final do século XIX mostra grandes empresas aumentando sua produção, reduzindo seus preços e impulsionando o desenvolvimento econômico e social dos EUA. Nas palavras sempre precisas de DiLorenzo:

Os economistas que acreditam que houve uma "idade de ouro do antitruste" nunca produziram qualquer evidência disso. Como demonstrei neste trabalho, o Sherman Act foi um instrumento usado para regular algumas das indústrias mais competitivas da América, que foram expandindo rapidamente sua produção e reduzindo os seus preços, para o desespero de seus menos eficientes (mas politicamente influentes) concorrentes. O Sherman Act, além disso, foi usado como um despiste para esconder a verdadeira causa do monopólio no final dos anos 1880: protecionismo. O principal patrocinador do projeto de lei tarifária de 1890, que passou apenas três meses após o Sherman Act, não era outro senão o próprio senador Sherman.[12]

No mesmo sentido se manifesta Thomas Woods, historiador americano formado em Harvard e com PhD na Columbia University:

Na realidade, era muito difícil para as grandes empresas manterem sua posição dominante em várias áreas industriais dos EUA do final do século XIX. Isso era válido para ramos industriais tão diversos quanto petróleo, aço, ferro, automóveis, maquinaria agrícola, cobre, acondicionamento de carne e serviços de telefonia. A concorrência era extremamente vigorosa.[13]

O que motivou a criação da lei antitruste americana — e o que sustenta todas as leis antitruste até os dias atuais — foi o protecionismo e o intervencionismo. É interessante para o governo ter, como moeda de troca, a possibilidade de fustigar empresas que estejam incomodando os amigos do rei. E muitas empresas também gostam de saber que podem contar com a ajuda do governo na hora de atacar concorrentes mais eficientes.

2. As falhas da teoria econômica que fundamenta o direito antitruste

O direito antitruste foi construído sob as bases da teoria econômica neoclássica, a qual utiliza, para análise de concentrações empresariais ou supostas condutas anticompetitivas, conceitos econômicos que possuem falhas grotescas. Uma dessas falhas, por exemplo, é confundir concentração com monopólio.
Para a teoria liberal clássica, o fato de um determinado mercado de bens ou serviços estar concentrado, havendo apenas uma empresa ou poucas empresas atuando nunca foi suficiente para caracterizar a existência de um monopólio (ou duopólio ou oligopólio), que devesse ser combatido por meio de intervenção estatal. A noção de monopólio sempre esteve ligada à existência de barreiras legais à entrada de competidores, algo que não pode ser criado por nenhum agente econômico privado, por mais poder de mercado que ele ostente. Só quem pode criar barreiras legais à entrada e, portanto, criar monopólios, duopólios ou oligopólios é o estado, através de regulamentações, políticas protecionistas etc. Nesse caso, realmente, os danos ao mercado são evidentes.
Num ambiente de livre iniciativa e livre concorrência, uma determinada empresa só consegue abocanhar expressiva fatia de mercado sendo mais eficiente que seus competidores, isto é, ofertando bens ou serviços mais baratos, de melhor qualidade ou ambas as coisas. E ela só conseguirá se manter com essa expressiva fatia de mercado, ou mesmo ampliá-la, se continuar sendo eficiente. Nesse caso, pois, a concentração, ainda que seja chamada de monopólio, não gera dano nenhum ao mercado.
Comparando as duas situações mencionadas nos parágrafos anteriores, Hans Sennholz, PhD em Economia pela New York University, distinguiu o monopólio ruim — gerado pelo estado por meio da criação de barreiras legais à entrada — do que ele chamava de monopólio bom — alta concentração decorrente de eficiência competitiva.

Em uma economia de mercado livre e desimpedida, sem agências reguladoras e conselhos antitruste, um monopólio não é causa para alarde. Uma empresa que porventura detenha o controle exclusivo de uma mercadoria ou de um serviço em um mercado específico será, ainda assim, incapaz de explorar essa situação, e pelos seguintes fatores competitivos: a concorrência potencial, a concorrência de substitutos, e a elasticidade da demanda.
(...)
Em um sistema de liberdade econômica irrestrita, uma posição monopolística de mercado só pode ser conquistada pela eficiência. Sem intervenções governamentais, uma empresa eficiente tende a crescer até atingir seu tamanho ótimo, quando os custos por unidade produzida são os menores.
(...)
Não se pode negar que, no atual mundo intervencionista em que vivemos, vários monopólios de fato possuem o poder de restringir a produção e praticar preços monopolísticos. Porém, a causa desta lamentável situação está na multiplicidade de restrições governamentais à livre concorrência, como regulamentações, burocracias, restrições ambientalistas e carga tributária alta, que serve como uma barreira protecionista que defende quem já está no mercado. Se o governo impede concorrentes de entrarem no mercado, os consumidores perdem a proteção oferecida pela concorrência potencial.
(...)
Por meio de concessões, licenças, patentes, tarifas e outras restrições, o governo na prática criou milhares de monopólios.[14]

Mas os neoclássicos questionam, afirmando que, ao conseguir uma concentração expressiva, a empresa adquire o chamado poder de mercado, o que permite que ela atue como se monopolista fosse, abusando dessa posição. Errado!
Pouco importa se apenas uma empresa domina um mercado de bens ou serviços, desde que não existam barreiras legais à entrada, as quais, repita-se, só podem ser criadas pelo estado. Sem barreiras legais à entrada, ainda que uma empresa se torne "monopolista" ela não poderá abusar de sua "posição dominante". Se ela aumentar os preços injustificadamente, por exemplo, seus consumidores reagirão, comprando produtos substitutos. Ademais, preços altos atraem concorrentes, os quais, se não houver barreiras legais à entrada, correrão para atender os consumidores insatisfeitos com os "preços abusivos" do monopolista. Como disse Ludwig von Mises, o grande expoente da Escola Austríaca de Economia,

se um empreendedor não obedecer estritamente às ordens do público tal como lhe são transmitidas pela estrutura de preços do mercado, ele sofrerá prejuízos e irá à falência. Outros homens que melhor souberam satisfazer os desejos dos consumidores o substituirão.[15]

Enfim, os neoclássicos desconhecem o conceito de "soberania do consumidor", tão bem trabalhado e explicado pela Escola Austríaca.

O conceito de monopólio ou de poder de monopólio [usado pelo direito antitruste] é equivocado. Não importa quantos concorrentes estão no mercado e sim se há livre entrada e saída. Somente quando há barreiras legais à entrada, ou seja, concessões de privilégios governamentais, que monopólios são constituídos.[16]

É preciso não confundir, também, liberdade de entrada e capacidade de entrada, como bem destaca George Reisman, PhD em Economia e professor emérito da Pepperdine University:

Liberdade de entrada não significa capacidade de entrar em um dado setor. Se as pessoas não possuem a capacidade de entrar em uma determinada área da economia (porque, por exemplo, elas não possuem o capital para isso), isso não significa que a liberdade de entrada no mercado foi violada. Assim, por exemplo, se for necessário um investimento mínimo de, digamos, $1 bilhão, para se ter uma mínima esperança de poder competir no setor de aparelhos eletrônicos e informática, isso não significa de modo algum que tal setor não possui liberdade de entrada, ou que a minha liberdade, como indivíduo, de entrar em tal setor foi violada de alguma forma só porque eu pessoalmente não tenho a capacidade de levantar o bilhão necessário.
O fato de eu não possuir ou não poder levantar o capital necessário não implica uma violação da minha liberdade de entrada, assim como o fato de eu não possuir um canal de televisão ou um jornal, e não gozar do apoio de nenhum deles, não implica uma violação da minha liberdade de expressão ou de imprensa.
Sob quais circunstâncias a liberdade de entrada estaria sendo violada? Ela estaria sendo violada se eu realmente possuísse ou pudesse obter o capital necessário— e, obviamente, fosse também capaz de satisfazer vários outros requerimentos necessários para poder concorrer, como ter montado uma equipe com administradores capacitados e mão-de-obra qualificada, dominar conceitos tecnológicos etc. — e fosse coercivamente impedido de entrar neste setor pelo governo.[17]

Assim, liberdade de entrada não é garantia de entrada. Longe de ser algo ruim para o ambiente concorrencial, o fato de um determinado mercado de bens ou serviços exigir altos investimentos para entrada mostra que nele existe concorrência. E mais: "se a entrada num determinado mercado exige recursos vultosos, isso tem o mérito de desencorajar amadores e diletantes, pois entregar recursos escassos a produtores ineficientes significa desperdiçá-los".[18]
Outro problema do direito antitruste é que toda a sua abordagem se baseia em mais um conceito econômico falho: a "concorrência perfeita".

A teoria macroeconômica neoclássica, prevalecente no meio acadêmico nos dias atuais e que deu origem à legislação antitruste, assenta-se na teoria dos modelos estáticos de competição perfeita, elaborados sobre cenários de equilíbrios cartesianos pré-estabelecidos, nos quais foram convencionalmente isoladas estas e aquelas variáveis e arbitrariamente impostas algumas condições que jamais se verificariam no mundo real, tais como um número idealmente infindo de competidores, o conhecimento completo do mercado, os produtos absolutamente homogêneos, a inexistência de restrições artificiais à circulação dos produtos e a ausência de inovações tecnológicas ou mercadológicas que interferissem nos preços e nas preferências dos consumidores.
O que esta escola econômica pretende demonstrar é que quaisquer desvios dos modelos ideais de competição perfeita tendem a gerar uma pior utilização dos recursos, e consequentemente, uma redução do bem-estar geral da sociedade, com base na presunção de que os operadores de um mercado não atomizado tendam a majorar os preços e reduzir a produção, gerando consequentemente a alegação da necessidade de que tais condutas devam ser monitoradas e reprimidas por meio da intervenção estatal.[19]

Como se vê, o modelo de concorrência perfeita é absolutamente irreal, porque desconsidera o fato óbvio de que o mercado é um processo dinâmico, e não um dado estático, que pode ser capturado e manipulado. Assim, podemos afirmar sem medo de errar que a concorrência perfeita é:

(...) um modelo fundado em pressupostos irrealistas, concebido para tratamento matemático de modo a que as contas "fechem" no final, e que contribui pouco para a compreensão do que se propõe a retratar. A concorrência perfeita é uma situação de equilíbrio, estática, morta. Um trabalho famoso de F. Hayek (The Meaning of Competition, no livro Individualism and Economic Order), economista vencedor do Nobel de 1974, demonstrou que, enquanto a concorrência no mundo real é um processo, evidentemente dinâmico, o modelo da concorrência perfeita esboça (por ironia, imperfeitamente) o resultado idealizado e esterilizado desse processo num determinado momento. Esse paradigma teórico não fornece ao estudioso nenhuma pista de como as coisas chegaram ao ponto em que chegaram, nem tampouco razão alguma para que se aceite o estado final imaginário apresentado como estado final concreto e muito menos motivo e legitimidade científica ou prática para que o modelo se preste a elemento normativo para julgamento e reforma dos mercados vivos.
O fracasso da concorrência perfeita se deve ao fato de que ela abstrai justamente o que é absolutamente fundamental no estudo da economia: o homem. Na economia de mercado é o homem em seu papel de consumidor quem determina o que deve ser produzido, em que quantidades e a que preços. E é o homem na qualidade de empresário quem procura organizar a produção no sentido de antecipar, descobrir e atender corretamente as preferências e gostos dos consumidores. E essas preferências e gostos estão em perene transformação porque essa é a natureza humana. As pessoas querem mais disso e menos daquilo, querem melhor qualidade e menor preço, querem coisas que ainda nem foram inventadas. O estudo fecundo da concorrência deve levar em conta o seu atributo dinâmico, sua natureza como processo, a inter-relação de todos os mercados, as preferências mutantes dos consumidores e a função dos empresários. Devemos aos economistas da escola austríaca a restauração e o refinamento da concepção correta e dos parâmetros adequados para a abordagem do fenômeno, que eram conhecidos e utilizados pelos economistas clássicos (v. por ex. Israel Kirzner, Competição e Atividade Empresarial).[20]

Ora, é da essência do mercado a imperfeição, já que a concorrência é um processo de descoberta, onde empreendedores se arriscam e buscam, constantemente, descobrir as preferências dos seus consumidores, sempre em busca do lucro.

Para a Escola Austríaca, o mercado é um processo de permanentes descobertas, de tentativas e erros, o qual, ao amortecer as incertezas, tende sistematicamente a coordenar os planos formulados pelos agentes econômicos. Como as diversas circunstâncias que cercam a ação humana estão ininterruptamente sofrendo mutações, segue-se que o estado de coordenação plena jamais é alcançado, embora os mercados tendam para ele.[21]

Não há, pois, como justificar a atuação estatal para corrigir supostas falhas de mercado, proibindo atos de concentração empresarial que tendam a permitir o surgimento de empresas com poder de mercado. É absurdo tentar impedir o funcionamento natural do mercado, em razão de suas "imperfeições" reais, e usar como parâmetro o modelo econômico irreal e estático da "concorrência perfeita". Isso significa negar a própria natureza do mercado como processo dinâmico de descoberta e ajuste em que os empreendedores atuam diante de incertezas. Com efeito, "a desorganização do mercado não é um problema, mas sim um sinal de vitalidade"[22]. Em suma: "usar o modelo de competição perfeita como objetivo das políticas de competição confunde o modelo com processos competitivos reais e leva a enormes erros de políticas".[23]
Diversos outros conceitos econômicos equivocados que fundamentam o direito antitruste poderiam ser mencionados, como o de "monopólio natural"[24]. Mas esse breve artigo não é o local apropriado para tanto[25].

3. Burocratas não possuem superpoderes

Assim como não existe, no mundo real, o modelo de concorrência perfeita dos economistas neoclássicos, também não existem serem humanos perfeitos. Os burocratas que ocupam as agências antitruste não são dotados de poderes sobrenaturais que lhes permitem adivinhar como o mercado deve funcionar para atingir seu desempenho ótimo.
O que se afirmou no parágrafo anterior deve parecer óbvio para muitos, não é mesmo? Mas será que todos já pararam para pensar que o direito antitruste exige que nós também ignoremos essa inexorável realidade?
Quando duas empresas resolvem se fundir, o que acontece? Alguns burocratas (no Brasil, são sete, de acordo com o art. 6º da nossa lei antitruste) se reúnem, discutem e decidem se aquela fusão vai ser boa ou ruim para o mercado. Nessa discussão, todos os conceitos econômicos equivocados da teoria econômica neoclássica são expostos como se fossem dogmas, e as empresas ficam reféns da decisão do "tribunal". Pare um pouco, reflita e depois se pergunte: isso está certo? É evidente que não! Se isso for a coisa certa a fazer, então é melhor planificarmos totalmente a economia e entregarmos o seu destino aos ditames desses burocratas iluminados.

O fato é que no sistema [do direito antitruste] os agentes estatais sabem melhor do que os próprios produtores o que deve ser produzido, em que quantidade e qualidade e a que preço, e do mesmo modo sabem melhor do que os consumidores o que é bom para eles. Ora, se o, digamos, "homo publicus" é um ser perfeito, ou ao menos não tão imperfeito quanto o "homo privatus", não existe razão de ordem lógica que impeça que o sistema superior absorva integralmente o sistema inferior. Ou, o que é a mesma coisa, se o estado é capaz de organizar o mercado melhor do que o fariam espontaneamente os milhões de compradores e vendedores que constituem este último, se o mercado entregue a si mesmo gera inexoravelmente concentração e miséria, por que não simplesmente suprimir a economia capitalista e deixar que o estado ordene justa e racionalmente a produção, distribuição e consumo? (...) Não há motivos para não abolir tout court a economia de mercado se aceitarmos os postulados básicos do [direito antitruste].[26]

É impossível prever os resultados de uma determinada concentração empresarial. Nem as empresas que estão se fundindo sabem o que vai acontecer. Pode ser que a decisão delas se mostre acertada, e a fusão acarrete diminuição de custos e aumento da eficiência. Porém, pode ser que a fusão não produza os efeitos esperados. Não há como adivinhar uma coisa ou outra.[27]
Mas o problema de conferir poderes de controlar a economia a burocratas não se esgota nesse aspecto. Antes fosse apenas isso. Alguns servidores públicos passam por um processo de lavagem cerebral e tendem a acreditar que eles são pessoas diferentes, imunes ao erro e a desvios éticos, os quais seriam privilégio do setor privado. Alguém consegue levar a sério uma afirmação dessa? Servidores públicos são seres humanos como quaisquer outros (sim, lembrem a eles isso!), mas que possuem uma diferença essencial em relação aos agentes do mercado: estes não possuem o aparato coercitivo estatal para impor suas vontades; aqueles, sim.

Embora pouco divulgados no Brasil, os economistas da chamada escola da Public Choice desenvolveram extensas e profundas análises do universo político partindo de premissas muito mais realistas do que as desposadas por Benayon, como a de que os agentes estatais atuam segundo seus próprios motivos egoísticos (motivo do lucro) tanto quanto seus pares no setor privado. A diferença entre uns e outros é que o operador estatal conta, em última análise, com a força policial para fazer valer sua vontade, ou seja, ele tem o privilégio, negado aos particulares, mesmo aos maiores conglomerados econômicos, de coagir legalmente terceiros a se submeterem aos seus ditames. Daí se infere que, uma vez munidos de poderes para se imiscuir na esfera econômica, os agentes do estado tendem a se servir deles em seu próprio benefício. De sorte que subsídios serão concedidos mediante comissões "por fora", licenças e autorizações burocráticas serão vendidas pela melhor oferta, a concorrência será proibida mediante retorno em dinheiro sonante ou votos de sindicatos de empregados dos setores protegidos e assim por diante, das altas esferas até o âmbito mais humilde dos camelôs de rua e seus algozes do "rapa". (...)[28]

Outro problema grave decorrente da concessão de poderes de controlar a economia aos burocratas das agências antitruste é a captura regulatória. As empresas bem relacionadas não encontram dificuldades para usar a regulação antitruste em seu favor. Vale lembrar que os especialistas em direito antitruste afirmam, sem rodeios, que na atual fase desse ramo jurídico-econômico ele deve ser utilizado como instrumento de políticas públicas.

Tendo-se em mente os objetivos da lei antitruste, aparece clara, conjuntamente com o aspecto instrumental desse tipo de norma, sua aptidão para servir à implementação de políticas públicas, especialmente de políticas econômicas entendidas como "meios de que dispõe o estado para influir de maneira sistemática sobre a economia".
Ou seja, o antitruste já não é visto apenas em sua função de eliminação dos efeitos autodestrutíveis do mercado, mas passa a ser encarado como um dos instrumentos (...) de que dispõe o estado para conduzir o sistema. Vale a referência às palavras de Siro Lombardini, mencionando um dos objetivos que pode ser perseguido mediante a aplicação da lei antitruste: "oferecer um instrumento para que as administrações públicas possam orientar as decisões dos grandes grupos de empresas para realizar o processo de desenvolvimento tido como possível e desejável".
Também no que se refere ao antitruste, ao vê-lo como um instrumento de implementação de políticas públicas, não estamos restringindo sua atuação ao campo da superestrutura. Ao contrário, trata-se de "um nível funcional de todo o social" (...).[29]

Fica claro, portanto, que a atuação de uma agência antitruste pode variar ao sabor das conveniências políticas. Se uma empresa está ganhando mercado em razão de sua eficiência, que tal abrir um processo contra ela, alegando a prática de "preço predatório", "abuso de posição dominante" ou qualquer outra "conduta anticompetitiva"?[30] Por outro lado, se uma empresa está em crise, que tal pedir o afrouxamento das regras do direito antitruste para permitir que ela, com o dinheiro do BNDES, faça uma fusão e adquira uma concentração de mercado que, em princípio, não seria permitida pela lei antitruste?[31] Aqui vale aquela famosa máxima: "aos amigos, tudo; aos inimigos, a lei".

4. E os ataques estatais à livre iniciativa e à livre concorrência? Quem pune?

Ficando claro que a regulação antitruste é absolutamente desnecessária num ambiente de livre mercado, sendo mesmo incompatível com a idéia de livre concorrência, resta ainda um questionamento: na medida em que é o estado o único agente capaz de criar barreiras legais à entrada e, consequentemente, produzir monopólios, duopólios, oligopólios e cartéis, estes sim nocivos à economia, não seria interessante ter uma autoridade antitruste para combater justamente esses ataques estatais ao ambiente concorrencial?
Sim, poderia até ser interessante, se a própria autoridade antitruste não fosse ela mesma um ente estatal. Por mais que os teóricos do direito administrativo moderno defendam a autonomia e a independência das agências reguladoras, como é o caso da autoridade antitruste, isso na prática não ocorre. Os burocratas dessas agências sabem, ainda que inconscientemente, que obedecem a "ordens" superiores, e qualquer passo fora da linha pode custar muito caro. Burocratas "autônomos e independentes", alheios às pressões dos altos escalões, não possuem vida longa na burocracia estatal.
Para que minhas afirmações não sejam qualificadas como suposições ou ilações, vou dar alguns exemplos práticos.
O que a autoridade antitruste faz quando o estado regulamenta profissões, criando "guildas" que impedem o livre exercício de ofício por qualquer pessoa? Nada, a despeito de isso ser uma violenta agressão à livre iniciativa.
O que a autoridade antitruste faz quando o estado pratica protecionismo, impedindo, por exemplo, empresas estrangeiras de competir com empresas nacionais? Nada, a despeito de isso ser uma violenta agressão à livre concorrência.
O leitor sabe que eu poderia citar 'n' outros exemplos de agressões estatais à livre iniciativa e à livre concorrência: regulamentações, licenças, autorizações etc. E a maioria dessas agressões é praticada justamente por "irmãs" da autoridade antitruste, as agências reguladoras: a ANAC impede que companhias aéreas estrangeiras façam voos domésticos; a ANCINE impõe cotas de programação nacional às empresas de TV a cabo; o BACEN impõe uma moeda e proíbe a criação de outras. E a autoridade antitruste faz o quê contra isso? Nada! Ela prefere ficar perseguindo empresas eficientes que estão conquistando consumidores oferecendo produtos e serviços que eles decidem comprar voluntariamente.
Alguns podem objetar dizendo que a lei não confere poderes para a autoridade antitruste agir contra essas agressões estatais à livre iniciativa e à livre concorrência. Não é verdade. Como eu disse no início deste artigo, uma das funções da autoridade antitruste é a "advocacia da concorrência", que consiste na prática de difundir a importância da livre iniciativa e da livre concorrência para o funcionamento sadio do mercado. No mínimo, caberia à autoridade antitruste, diante dessas agressões estatais ao ambiente concorrencial, recomendar a não realização de tais práticas ou a sua cessação. Por que a autoridade antitruste não opina nos projetos de lei que regulamentam profissões, pedindo ao Congresso Nacional a não aprovação deles, ou recomendando ao Presidente o seu veto, em razão de eles configuraram uma agressão à livre iniciativa? Por que a autoridade antitruste não emite uma recomendação formal contra todas as medidas protecionistas orquestradas pela equipe econômica do governo federal, em razão de elas serem uma agressão à livre concorrência? Alguém já leu na grande mídia uma matéria noticiando que a autoridade antitruste brasileira fez algo desse tipo?

5. O que a nova lei realmente significa

Murray Rothbard, talvez o mais brilhante aluno de Mises, nos alertou para o fato de que a burocracia estatal tende a crescer sempre, e para tanto vai convencer os políticos e a opinião pública de que sua missão é defender o interesse público.

Portanto, ao passo que a tendência natural de empresas e instituições que operam no livre mercado é ser a mais eficiente possível em atender às demandas dos consumidores, a tendência natural da burocracia estatal é crescer, crescer e crescer, e tudo à custa dos espoliados, extorquidos e ignorantes pagadores de impostos.
Se o lema da economia de mercado é o lucro, o lema da burocracia é o crescimento. Como esses respectivos objetivos devem ser alcançados? A maneira de se obter lucro em uma economia de mercado é superando seus concorrentes no dinâmico e continuamente volátil processo de satisfazer as demandas dos consumidores da melhor forma possível: criar restaurantes self-service em vez de restaurantes à la carte, notebooks em vez de computadores, ou mesmo inventar fotocopiadoras e máquinas fotográficas digitais. Em outras palavras, produzir bens ou serviços concretos, pelos quais os consumidores estarão dispostos a pagar. Por outro lado, para conseguir seu crescimento, o chefe da burocracia estatal terá de convencer a legislatura ou o comitê de planejamento de que seus serviços serão, de alguma maneira indefinida, benéficos ao "interesse público" ou ao "bem-estar da população como um todo".[32]

A nova lei antitruste brasileira é uma prova cabal de que Rothbard estava certo. A lei cria nada menos do que 200 cargos, fato que fez o CADE procurar um novo endereço, numa área de aproximadamente 13 (treze) mil metros quadrados[33]. O contrato de aluguel saiu pela bagatela de R$ 44 milhões (quarenta e quatro milhões de reais).[34]
Não deve ter sido difícil para o CADE conseguir convencer o governo a aumentar seu poder e seu tamanho. O CADE arrecada muito dinheiro para os cofres públicos, mais até do que recebe do governo como dotação orçamentária[35]. Só para submeter um ato de concentração ao exame do CADE uma empresa paga R$ 45 mil (quarenta e cinco mil reais). As multas aplicadas são astronômicas, como as que o CADE aplicou à AMBEV[36] — R$ 350 milhões (trezentos e cinquenta milhões de reais) — e ao chamado "cartel dos gases"[37] — mais de R$ 2 bilhões (dois bilhões de reais).
O meio empresarial já está chamando a autoridade antitruste brasileira de "Super CADE"[38], em razão de a lei ter aumentado seu poder e seu tamanho. Isso significa que as empresas devem ficar ainda mais atentas, infelizmente. Vale lembrar que isso gera um custo enorme para as empresas.

Em nenhum aspecto podemos considerar positiva a atuação de organizações antitruste sobre o sistema econômico. Primeiro, ficar processando empresas, de forma praticamente aleatória, apenas reduz o grau de estabilidade econômica e dificulta qualquer plano de ação de longo prazo, principalmente para empresas de grande porte ou empresas em trajetória de crescimento. Segundo, ao impedir a livre fusão de empresas os ganhos derivados da fusão deixam de ser explorados (como ganhos em escala). Terceiro, é relevante para as empresas antecipar as consequências da atuação do CADE para seu ambiente de negócios. Por isso conseguir driblar a organização se torna mais um custo e mais uma complicação no grau de incerteza com que a empresa se defronta o que resulta no desperdício do conhecimento dos empreendedores no processo de descobrir como driblar esse tipo de órgão estatal. Em outras palavras, ao invés de se focar em servir aos consumidores, as empresas precisam se focar em como lidar com órgãos estatais criados para intervir no ambiente de negócios (onde o órgão antitruste é um deles), resultando na perda de eficiência do processo de mercado. Por esses motivos eu defendo a extinção dessa organização.[39]

Nada indica, porém, que o Super CADE vá combater, de alguma forma, os ataques estatais à livre iniciativa e à livre concorrência. Agências reguladoras vão continuar sendo criadas, e as já existentes vão aumentar seu poder cada vez mais, assim como fez o CADE. O governo continuará intervindo na economia, controlando a moeda, praticando protecionismo, anunciando pacotes de socorro a empresas em crise etc. A regulamentação de profissões continuará avançando, criando novos cartéis corporativos. Livre iniciativa e livre concorrência continuarão a existir apenas no papel. Na prática, continuaremos a ter uma iniciativa regulada e uma concorrência regulada.

6. Conclusão

Eu já fui um entusiasta do direito antitruste e cheguei a trabalhar no CADE por quase 3 (três) anos. Estudando a fundo o assunto, sobretudo a partir da leitura dos economistas ligados à Escola Austríaca — muitos dos quais foram citados ao longo deste artigo —, convenci-me de que leis e órgãos antitruste são, realmente, desnecessários numa economia de livre mercado. Como bem disse o professor George Reisman:

Legislações antitruste e agências reguladoras não têm lugar em uma sociedade livre. Legislações antitruste e agências reguladoras devem ser totalmente eliminadas. Seus conceitos filosóficos, políticos e econômicos devem ser totalmente desacreditados, e as leis que permitem sua prática devem ser eliminadas.[40]

As leis antitruste fazem com que os empresários fiquem mais preocupados em atender às determinações arbitrárias dos burocratas do que as preferências dos consumidores[41]. Livre mercado significa justamente ausência de qualquer regulação estatal, inclusive a equivocada regulação antitruste.

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[1] O estudo teve a participação dos estudantes de Direito Patrick Coelho Campos Gappo, Adriel Santos Santana, Jean Monteiro, Odilon Cândido e Daniel Tisi, bem como a contribuição do economista Daniel Marchi, fundador do Grupo de Estudos de Escola Austríaca do DF, do qual faço parte. O relatório final do estudo está disponível no seguinte endereço eletrônico: http://www.congressodireitocomercial.org.br/2012/relatorios/2_ANALISE_CRITICA_DO_DIREITO_ANTITRUST.pdf. Parte das idéias do estudo também foram usadas por mim em minha palestra no referido congresso, a qual pode ser vista aqui: http://www.youtube.com/watch?v=ZaYjc6SEjzI.

[2] SALOMÃO FILHO, Calixto. Direito concorrencial: as estruturas. 3ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 71.

[3] FORGIONI, Paula. Os fundamentos do antitruste. 3ª Ed. São Paulo: RT, 2008, pp. 69/70. A opinião contrária mencionada nessa passagem é de Thomas DiLorenzo, que é citado pela professora Paula em algumas notas de rodapé, numa das quais ela o associa à Escola de Chicago.

[4] ARMENTANO, Dominick. Antitrust: the case for repeal. https://mises.org/document/6061/

[5] DiLORENZO, Thomas. Anti-trust, anti-truth. http://mises.org/daily/436

[6] MALEK, Ninos P. Anti-trust is anti-competitive. http://mises.org/daily/1555

[7] DiLORENZO, Thomas. Anti-trust, anti-truth. http://mises.org/daily/436

[8] ARMENTANO, Dominick. Antitrust: the case for repeal. https://mises.org/document/6061/. Armentano destaca que em primeira instância a ALCOA foi absolvida, mas a Corte de Apelações reformou tal decisão e a condenou, mesmo reconhecendo que ela conquistou mercado com base na sua maior eficiência. Uma decisão dessa não protege consumidores, mas concorrentes.

[9] GALLES, Gary. 100 years of myths about Standar Oil. http://mises.org/daily/5274/100-Years-of-Myths-about-Standard-Oil. O professor Galles, da Pepperdine University, afirma que: "O problema com o mito do caso de preços predatórios da Standard Oil, que é a base da legislação antitruste e das montanhas de processos judiciais que ela tem gerado, é que os fatos não são apenas falsos, mas na verdade o oposto do que realmente aconteceu".

[10] ARMENTANO, Dominick. Antitrust: the case for repeal. https://mises.org/document/6061/.

[11] PIRES, Klauber Cristofen. Lei antitruste: proteção da concorrência ou dos concorrentes? http://www.mises.org.br/Ebook.aspx?id=70.

[12] DiLORENZO, Thomas. The truth about Sherman. https://mises.org/daily/331.

[13] WOODS, Thomas. Monopólio e livre mercado: uma antítese. http://www.mises.org.br/Article.aspx?id=366.

[14] SENNHOLZ, Hans F. Monopólio bom e monopólio ruim: como são criados e como são mantidos. http://www.mises.org.br/Article.aspx?id=1057.

[15] MISES, Ludwig von. Mercado, praxeologia, lucros e prejuízos. http://www.mises.org.br/Article.aspx?id=1107.

[16] ABREU, Mariana Piaia. Metodologia brasileira de análise de atos de concentração horizontal: a perspectiva da Escola Austríaca versus o mainstream. Monografia disponível em http://www.mises.org.br/mwg-internal/de5fs23hu73ds/progress?id=4hX38LmKYQ.

[17] REISMAN, George. Legislações antitruste e agências reguladoras não podem existir em uma sociedade livre. http://www.mises.org.br/Article.aspx?id=1210.

[18] GARCIA, Alceu. Concorrência, monopólio e Estado. http://www.profpito.com/CONCORRENCIAMONOPOLIOEESTADO.html.

[19] PIRES, Klauber Cristofen. Lei antitruste: proteção da concorrência ou dos concorrentes? Monografia ainda não publicada.

[20] GARCIA, Alceu. Crítica à economia política do professor Benayon. http://www.olavodecarvalho.org/convidados/0201.htm.

[21] IORIO, Ubiratan Jorge. O processo de mercado. http://www.mises.org.br/Article.aspx?id=636.

[22] HORWITZ, Steven. A desorganização dos mercados. http://www.ordemlivre.org/2011/11/a-desorganizacao-dos-mercados/.

[23] HORWITZ, Steven. A desorganização dos mercado: parte 2. http://www.ordemlivre.org/2011/12/a-desorganizacao-dos-mercados-parte-2/.

[24] Sobre o assunto, conferir: DiLORENZO, Thomas. O mito do monopólio natural. http://www.mises.org.br/Article.aspx?id=1309.

[25] Para entender melhor os erros dos conceitos econômicos que fundamentam o direito antitruste, conferir: ABREU, Mariana Piaia. Metodologia brasileira de análise de atos de concentração horizontal: a perspectiva da Escola Austríaca versus o mainstream. Monografia disponível em http://www.mises.org.br/mwg-internal/de5fs23hu73ds/progress?id=4hX38LmKYQ; e ROQUE, Leandro. Fusões, aquisições, concorrência perfeita e a soberania do consumidor. http://www.mises.org.br/Article.aspx?id=757

[26] GARCIA, Alceu. Concorrência, monopólio e Estado. http://www.profpito.com/CONCORRENCIAMONOPOLIOEESTADO.html.

[27] Algumas decisões do CADE geram intensos debates entre os próprios conselheiros, que assumem posturas diametralmente opostas quanto à aprovação de um ato de concentração, o que denota a arbitrariedade de suas decisões. Outras vezes o CADE decide que uma fusão não deve ser permitida, mas o Judiciário afirma o contrário, permitindo a operação. Dá pra imaginar a insegurança que isso gera no mercado? Um caso conhecido é o da Nestlé-Garoto, fusão que o CADE rejeitou, em votação apertada. No Judiciário, as empresas conseguiram manter a fusão, e o processo se arrasta até hoje: http://economia.estadao.com.br/noticias/economia,compra-da-garoto-pela-nestle-faz-oito-anos,6647,0.htm. A propósito, os efeitos temidos pelo CADE e usados pelos conselheiros para rejeitar a operação se produziram?

[28] GARCIA, Alceu. Concorrência, monopólio e Estado. http://www.profpito.com/CONCORRENCIAMONOPOLIOEESTADO.html.

[29] FORGIONI, Paula. Os fundamentos do antitruste. 3ª Ed. São Paulo: RT, 2008, pp. 193/194.

[30] http://economia.estadao.com.br/noticias/negocios+tecnologia,buscape-entra-na-briga-contra-googlepolio,96762,0.htm. Consta que na França o Google foi condenado por oferecer o serviço de mapas gratuitamente (!): http://olhardigital.uol.com.br/negocios/digital_news/noticias/google-e-multado-em-us-660-mil-por-oferecer-google-maps-gratuitamente.

[31] São as famosas teses (i) da formação de "campeões nacionais", muito influente nos gabinetes de Brasília, e (ii) da aplicação da failing firm defense, que pode ser definida sucintamente como uma teoria segundo a qual a autoridade antitruste pode permitir altas concentrações se o objetivo for evitar a falência de uma grande empresa.

[32] ROTHBARD, Murray. Como funciona a burocracia estatal. http://www.mises.org.br/Article.aspx?id=1180.

[33] http://www.cade.gov.br/Default.aspx?83b647d222f70c17e351e373c185.

[34] http://economia.estadao.com.br/noticias/economia,cade-define-nova-sede-e-mudanca-pode-sair-ate-a-pascoa,102939,0.htm.

[35] http://g1.globo.com/economia/noticia/2012/01/arrecadacao-do-cade-superou-seu-orcamento-no-ano-passado.html.

[36] http://www1.folha.uol.com.br/folha/dinheiro/ult91u598636.shtml. Sobre o caso AMBEV, conferir: PIRES, Klauber Cristofen. A lei antitruste e a AMBEV: uma análise sob a norma da razão. http://www.mises.org.br/Article.aspx?id=362.

[37] http://oglobo.globo.com/economia/correcao-cade-impoe-multa-recorde-em-cartel-de-gases-industriais-2957671.

[38] http://exame.abril.com.br/economia/noticias/dilma-sanciona-lei-que-cria-o-super-cade.

[39] GUTHMANN, Rafael R. Para que serve o CADE? http://www.libertarianismo.org/index.php/academia/15-artigos/369-para-que-serve-o-cade

[40] REISMAN, George. Legislações antitruste e agências reguladoras não podem existir em uma sociedade livre. http://www.mises.org.br/Article.aspx?id=1210.

[41] ROTHBARD, Murray. Abolish antitrust Laws. http://mises.org/daily/4397.

Em defesa do direito de firmar contratos livremente.

O TEXTO ABAIXO FOI ESCRITO PARA O SITE DO INSTITUTO LUDWIG VON MISES BRASIL (http://www.mises.org.br/).

Introdução

Uma das melhores formas de analisar o grau de intervencionismo estatal numa sociedade é avaliar o respeito do ordenamento jurídico aos contratos e aos seus princípios fundamentais — autonomia da vontade e força obrigatória —, o que pode ser feito examinando-se quanto os legisladores restringem o primeiro e quanto os juízes relativizam o segundo.

Os princípios da autonomia da vontade e da força obrigatória dos contratos

Segundo o princípio da autonomia da vontade, também chamado de autonomia privada, as pessoas possuem a liberdade de contratar e a liberdade contratual.
Por liberdade de contratar se entende a faculdade que as pessoas possuem de realizar ou não um determinado contrato, ou seja, toda pessoa é livre para assumir obrigações por meio de contratos voluntários, e nenhuma pessoa assumirá obrigação contratual contra a sua vontade. Por outro lado, a liberdade contratual assegura a todos a possibilidade de estabelecer livremente o conteúdo do contrato, permitindo inclusive a celebração de contratos atípicos, isto é, acordos não previstos nem regulamentados expressamente na legislação.
Assim, podemos afirmar que o reconhecimento do princípio da autonomia da vontade significa dizer que as pessoas são livres para (i) decidir se vão contratar ou não, (ii) escolher com quem vão manter relações contratuais, (iii) delimitar o que vai ser objeto da relação contratual, (iv) fixar o conteúdo dessa relação contratual etc.
Podemos afirmar também que o princípio da autonomia da vontade se desdobra em outro princípio: o da força obrigatória dos contratos, segundo o qual aqueles que firmam um acordo livre e voluntariamente se obrigam a cumprir os termos e condições da avença. Atribui-se a Ulpiano, no Digesto, o brocardo latino "pacta sunt servanda", que expressa a idéia de que os contratos devem ser cumpridos.
Os princípios da autonomia da vontade e da força obrigatória dos contratos são formulações fundamentais da doutrina liberal. A afirmação e o reconhecimento deles significam dizer que uma obrigação contratual depende, para nascer, apenas e tão-somente da manifestação livre e voluntária da vontade das partes, não devendo a lei permitir qualquer intervenção estatal nas relações privadas, mas apenas assegurar o fiel cumprimento dos acordos firmados.
Com efeito, o estudo da História nos mostra que foi justamente o exercício da liberdade de contratar e da liberdade contratual, ambas decorrentes do reconhecimento da autonomia da vontade das partes, que permitiu o florescimento da sociedade liberal moderna, na qual o sucesso e/ou a respeitabilidade de alguém não é algo determinado pelo seu status (isto é, do fato de pertencer a uma família, a um grupo ou a uma categoria), mas fruto de suas escolhas individuais, livremente manifestadas. Tem-se aqui a aplicação da famosa "Lei de Maine": "the movement of the progressive societies has hitherto been a movement from Status to Contract"[1].
Pois bem. O que pretendo demonstrar nas linhas a seguir é que tanto o princípio da autonomia da vontade das partes quanto o princípio da força obrigatória das avenças têm sofrido mitigações que põem os contratos em crise e abalam sobremaneira as estruturas sobre as quais foram construídas as civilizações modernas.

A doutrina jurídica que tenta justificar a mitigação dos princípios contratuais

A mitigação dos princípios da autonomia da vontade e da força obrigatória dos contratos, que se encontra a pleno vapor em nosso país, não é obra do acaso. Há algum tempo o pensamento jurídico foi tomado de assalto pelo estatismo, e a ideologia liberal clássica que influenciou algumas de nossas boas leis do passado foi perdendo espaço para a ideologia social-democrata, a qual, como sabemos, norteou até mesmo a elaboração de nossa Constituição Federal, dando origem a esse enorme estado assistencialista que somos obrigados a financiar e cujo crescimento, em tamanho e em poder, não sabemos como frear.
No âmbito da teoria jurídica contratual, um dos mais bem sucedidos juristas no trabalho de desqualificar a autonomia da vontade e submetê-la ao intervencionismo estatal foi o italiano Enzo Roppo, o qual, em sua conhecida obra "O contrato"[2], cuja primeira edição data de 1977, construiu as bases da doutrina do dirigismo contratual, cuja máxima é a estranha afirmação de que "a lei liberta, e a liberdade escraviza".

As idéias solidaristas e socialistas e a hipertrofia do Estado levaram todavia o direito ao dirigismo contratual, expandindo-se a área das normas de ordem pública destinadas a proteger os elementos economicamente fracos, favorecendo o empregado, pela criação do direito do trabalho, o inquilino, com a legislação de emergência sobre locações, e o consumidor, por uma legislação específica em seu favor.
O dirigismo contratual diminuiu e restringiu a autonomia da vontade, em virtude da elaboração de uma série de normas legislativas fixando princípios mínimos que os contratos não podem afastar (salário-mínimo, tabelamento de gênero, fixação de percentagem de juros).[3]

No Brasil, por sua vez, o trabalho de desqualificação do princípio da autonomia da vontade e de preparação do terreno para a sua progressiva relativização teve a jurista Cláudia Lima Marques como um de seus principais artífices. Suas principais idéias nesse sentido estão contidas na obra "Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais"[4], cuja primeira edição data de 1992. Logo no início do livro, a autora deixa clara sua posição:

A concepção de contrato, a ideia de relação contratual, sofreu, porém, nos últimos tempos uma evolução sensível, em face da criação de um novo tipo de sociedade, sociedade industrializada, de consumo, massificada, sociedade de informação e, em face, também, da evolução natural do pensamento teórico-jurídico.
O contrato evoluirá, então, de espaço reservado e protegido pelo direito para a livre e soberana manifestação da vontade das partes, para ser um instrumento jurídico mais social, controlado e submetido a uma série de imposições cogentes, mas equitativas.[5]

Como se vê, para Roppo e seus inúmeros seguidores, o surgimento desse dirigismo contratual se deu em razão da suposição de que a liberdade de contratar e a liberdade contratual, num regime de desigualdades econômicas e sociais, produzem um forte desequilíbrio nas relações contratuais, cabendo ao estado intervir para corrigir esse desequilíbrio[6]. Assim,

o pensamento jurídico modificou-se radicalmente, convencendo-se os juristas (...) que entre o forte e o fraco é a liberdade que escraviza e a lei que liberta.[7]

À procura do equilíbrio contratual, na sociedade de consumo moderna, o direito destacará o papel da lei como limitadora e como verdadeira legitimadora da autonomia da vontade. A lei passará a proteger determinados interesses sociais, valorizando a confiança depositada no vínculo, as expectativas e a boa-fé das partes contratantes.
Conceitos tradicionais como os do negócio jurídico e da autonomia da vontade permanecerão, mas o espaço reservado para que os particulares auto-regulem suas relações será reduzido por normas imperativas (...). É uma nova concepção de contrato no Estado Social, em que a vontade perde a condição de elemento nuclear, surgindo em seu lugar elemento estranho às partes, mas básico para a sociedade como um todo: o interesse social.
Haverá um intervencionismo cada vez maior do Estado nas relações contratuais, no intuito de relativizar o antigo dogma da autonomia da vontade com as novas preocupações de ordem social, com a imposição de um novo paradigma, o princípio da boa-fé objetiva. É o contrato, como instrumento à disposição dos indivíduos na sociedade de consumo, mas, assim como o direito de propriedade, agora limitado e eficazmente regulado para que alcance sua função social.[8]

Roppo e os "dirigistas" se arvoram no papel de tutores da liberdade alheia e acham que é preciso retirar a liberdade contratual dos "mais fracos" a fim de garantir-lhes essa mesma liberdade. Eles, em suma, acreditam que "a liberdade contratual destrói-se a si própria, determinando a sua própria negação"[9]. É realmente algo difícil de entender. Os seguintes excertos da obra de Roppo elucidam bem a sua mentalidade intervencionista e anti-individualista:

(...) Mas a evolução do instituto contratual registra, outrossim, fenômenos muito relevantes, que reflectem verdadeiras e próprias restrições da liberdade contratual, limitações substanciais do autônomo poder de decidir e desenvolver, sob a forma de contrato, as iniciativas económicas sugeridas pelas conveniência de mercado.[10]

Em casos do gênero, o remédio consiste, então, em regra, numa intervenção autoritária externa do poder público ? geralmente do legislador ? que reage às restrições ou à expropriação de facto da liberdade contratual das "partes débeis", restringindo, por sua vez, mas com prescrições normativas formais, a liberdade contratual das "partes fortes" do contrato, pois já sabemos que é o exercício da liberdade contratual dos contraentes em posição de superioridade económica e social a causar directamente a supressão contratual dos contraentes em posição económica e socialmente deteriorada.[11]

Pois bem. Sempre cheios de boas intenções, como a de proteger as partes contratuais "vulneráveis" ou "débeis" em uma suposta guerra contra as partes contratuais mais fortes, os teóricos do dirigismo contratual concluem que o problema é o excesso de liberdade e propõem como solução a supressão ou mitigação dessa liberdade, a qual será levada a efeito, obviamente, pelo estado.

As restrições legislativas ao princípio da autonomia da vontade

Com base na doutrina do dirigismo contratual, descrita no tópico antecedente, há tempos o princípio da autonomia da vontade vem sofrendo restrições legais, e, no Brasil, um dos marcos desse infeliz processo legislativo é o famigerado Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990), na esteira do qual vêm sendo editadas outras tantas leis que retiram das pessoas o inalienável direito de firmar livremente acordos voluntários. Vejam o que diz Cláudia Lima Marques sobre esse triste fenômeno:

Segundo a nova visão do direito, o contrato não pode mais ser considerado somente como um campo livre e exclusivo para a vontade criadora dos indivíduos. Hoje, a função social do contrato, como instrumento basilar para o movimento das riquezas e para a realização dos legítimos interesses dos indivíduos, exige que o contrato siga um regramento legal rigoroso. A nova teoria contratual fornecerá o embasamento teórico para a edição de normas cogentes, que traçarão o novo conceito e os novos limites da autonomia da vontade, com o fim de assegurar que o contrato cumpra sua nova função social.
Nesse sentido, o Código de Defesa do Consumidor representa o mais novo e mais amplo grupo de normas cogentes, editado com o fim de disciplinar as relações contratuais entre fornecedor e consumidor, segundo os postulados da nova teoria contratual.[12]

Uma das leis que seguiu essa equivocada trilha aberta pelo CDC foi o nosso atual Código Civil (Lei nº 10.406/2002). O CC, principal lei que disciplina as relações privadas no país, consagra o princípio da autonomia da vontade, mas o submete a uma forte mitigação. Confiram-se, a propósito, as regras contidas nos artigos 421 e 425 desse diploma legislativo:

Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato.

Art. 425. É lícito às partes estipular contratos atípicos, observadas as normas gerais fixadas neste Código.

Nos dois dispositivos legais transcritos fica clara a mitigação da autonomia da vontade das partes, que só podem celebrar contratos se eles cumprirem uma tal função social, modismo jurídico que, propositalmente, não ostenta uma conceituação precisa, para servir a todo tipo de malabarismo interpretativo que possibilite a restrição da liberdade dos contratantes.
Ninguém menos do que Miguel Reale, que encabeçou a comissão elaboradora do projeto de lei que deu origem ao atual CC, confessou que o uso da vaga e imprecisa expressão "função social" foi proposital, com o intuito de permitir "soluções equitativas":

Na elaboração do ordenamento jurídico das relações privadas, o legislador se encontra perante três opções possíveis: ou dá maior relevância aos interesses individuais, como ocorria no Código Civil de 1916, ou dá preferência aos valores coletivos, promovendo a "socialização dos contratos"; ou, então, assume uma posição intermédia, combinando o individual com o social de maneira complementar, segundo regras ou cláusulas abertas propícias a soluções equitativas e concretas. Não há dúvida que foi essa terceira opção a preferida pelo legislador do Código Civil de 2002.
É a essa luz que deve ser interpretado o dispositivo que consagra a função social do contrato.[13]

A relativização do princípio da força obrigatória dos contratos pela jurisprudência

Todo esse contínuo processo de esculhambação legislativa e doutrinária do princípio da autonomia da vontade, obviamente, não tardou para obter seus perniciosos reflexos na jurisprudência de nossos tribunais, os quais absorveram mansamente as infundadas idéias que norteiam a doutrina anti-libertária do dirigismo contratual.
Enquanto os legisladores solapam a autonomia da vontade, suprimindo das partes a liberdade de contratar e a liberdade contratual, os juízes relativizam a força obrigatória dos contratos, sentindo-se cada vez mais à vontade para revisar contratos e chancelar o descumprimento de acordos firmados.
A propósito, confiram-se alguns trechos de julgados de uma de nossas principais Cortes Superiores, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), o qual é responsável por uniformizar a interpretação da legislação federal brasileira, fazendo com que todos os demais juízes e tribunais sigam suas orientações:

(...) Deveras, consoante cediço, o princípio pacta sunt servanda, a força obrigatória dos contratos, porquanto sustentáculo do postulado da segurança jurídica, é princípio mitigado, posto sua aplicação prática estar condicionada a outros fatores, como, por v.g., a função social, as regras que beneficiam o aderente nos contratos de adesão e a onerosidade excessiva.
O Código Civil de 1916, de feição individualista, privilegiava a autonomia da vontade e o princípio da força obrigatória dos vínculos. Por seu turno, o Código Civil de 2002 inverteu os valores e sobrepõe o social em face do individual.
(...)
(AgRg no REsp 838.127/DF, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, julgado em 17/02/2009, DJe 30/03/2009)

(...) A jurisprudência do STJ se posiciona firme no sentido que a revisão das cláusulas contratuais pelo Poder Judiciário é permitida, mormente diante dos princípios da boa-fé objetiva, da função social dos contratos e do dirigismo contratual, devendo ser mitigada a força exorbitante que se atribuía ao princípio do pacta sunt servanda. Precedentes.
(...)
(AgRg no Ag 1383974/SC, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 13/12/2011, DJe 01/02/2012)

Julgados como esses dois acima transcritos são proferidos aos montes, diariamente, em nossos fóruns e tribunais. O contrato, instituto intrinsecamente ligado à liberdade individual, foi socializado.

Conclusão

Se, conforme dito no início deste breve ensaio, uma das melhores formas de analisar o grau de intervencionismo estatal numa sociedade é avaliar o respeito do ordenamento jurídico aos princípios da autonomia da vontade e da força obrigatória dos contratos, podemos concluir, sem titubear, que estamos vivenciando o período mais intervencionista de nossa história, tamanho é o dirigismo contratual a que estamos cada vez mais submetidos[14].
Esse dirigismo contratual, conforme visto, manifesta-se basicamente de duas formas: (i) a edição de leis que restringem o binômio liberdade de contratar / liberdade contratual, decorrente da mitigação da autonomia da vontade, e (ii) o excessivo revisionismo judicial dos contratos, decorrente da relativização da máxima pacta sunt servanda. De um lado, os legisladores retiram das pessoas o direito de firmar livremente acordos voluntários. De outro lado, os julgadores retiram desses acordos voluntários a sua imprescindível força vinculante. Tudo em nome do "social".
É urgente, pois, uma reação em defesa dos contratos. Nós, que acreditamos na propriedade privada, no livre mercado e na não-iniciação de agressão, precisamos lutar para recuperar a nossa autonomia da vontade e, consequentemente, o nosso direito de construir, com base na ordem espontânea e em arranjos consensuais e voluntários, uma sociedade livre, onde os engenheiros sociais do estatismo, que escondem suas armas por trás de supostas boas intenções, não consigam mais nos escravizar.
Essa luta, porém, precisa começar agora. Os estudantes de Direito de todo o país estão, há tempos, sendo vítimas dessa doutrinação. As idéias que foram aqui sucintamente expostas são repetidas como verdades absolutas em nossas universidades. Uma geração de juristas socialistas, paladinos do igualitarismo e detratores do individualismo, está sendo forjada. É preciso que os libertários percebam que o debate econômico é importante, mas não é o único.

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[1] MAINE, Henry James Sumner. Ancient Law. London: J. M. Dent, 1954, p. 100. Maine (http://en.wikipedia.org/wiki/Henry_James_Sumner_Maine) foi um jurista e historiador inglês que demonstrou que a liberdade de contratar e a liberdade contratual foram fundamentais para o esfacelamento da sociedade feudal do Antigo Regime, marcada pelo corporativismo e pela imobilidade econômica e social.

[2] Para este artigo, foi consultada a primeira edição em português da obra: ROPPO, Enzo. O contrato. Tradução de Ana Coimbra e M. Januário C. Gomes. Coimbra: Almedina, 1988.

[3] WALD, Arnoldo. Obrigações e contratos. 16ª ed. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 191.

[4] Para este artigo, foi consultada a quarta edição da obra: MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais. 4ª edição. São Paulo: RT, 2002.

[5] MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais. 4ª edição. São Paulo: RT, 2002, p. 39.

[6] Ainda em 2007, na primeira edição do meu livro Curso de direito empresarial, quando eu ainda nem conhecia o libertarianismo, escrevi o seguinte sobre o dirigismo contratual: "Registre-se aqui apenas uma opinião particular nossa. A autonomia da vontade, como se sabe, desenvolveu-se a partir da ideologia do liberalismo, que consagrou a liberdade individual que cada pessoa possui para obrigar-se contratualmente. Portanto, não nos encantamos, como o fazem muitos autores, com essa recente tendência de realçar o chamado conteúdo social do contrato. Trata-se, na verdade, de um flerte com o autoritarismo ideológico, uma brecha a mais para que a lei fustigue o individualismo".

[7] GOMES, Orlando. Contratos. 24. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001. p. 26.

[8] MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais. 4ª edição. São Paulo: RT, 2002, pp. 175-176.

[9] ROPPO, Enzo. O contrato. Tradução de Ana Coimbra e M. Januário C. Gomes. Coimbra: Almedina, 1988, p. 319.

[10] ROPPO, Enzo. O contrato. Tradução de Ana Coimbra e M. Januário C. Gomes. Coimbra: Almedina, 1988, p. 311.

[11] ROPPO, Enzo. O contrato. Tradução de Ana Coimbra e M. Januário C. Gomes. Coimbra: Almedina, 1988, p. 327.

[12] MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais. 4ª edição. São Paulo: RT, 2002, p. 222.

[13] Texto disponível em: http://www.miguelreale.com.br/artigos/funsoccont.htm.

[14] A análise do dirigismo contratual empreendida neste texto foi extremamente restritiva, porque enfocou, basicamente, as relações contratuais formais e partiu de uma exame estritamente técnico do assunto, talvez até abusando do juridiquês. Podemos, no entanto, fazer uma análise mais abstrata e perceber que praticamente toda ação estatal intervencionista tem, na sua origem, a negação do nosso direito de firmar contratos livremente. Quando o estado, por exemplo, regulamenta profissões, pratica protecionismo, criminaliza comportamentos etc., o que está na raiz de todas essas medidas intervencionistas é a supressão da liberdade contratual. O estado está, nesses casos, impedindo que (i) pessoas contratem voluntariamente profissionais não regulamentados, (ii) consumidores contratem voluntariamente com empresas estrangeiras, (iii) indivíduos contratem voluntariamente a aquisição de drogas para uso próprio, e assim por diante.